terça-feira, 20 de setembro de 2011

Porque sempre amou o negro


Tinha uma caneta e não conseguia mais escrever. Seus dedos, já tão treinados, gostavam de açoitar aquela estrutura tão organicamente hierarquizada. Sopinha de letras com organização.

E seu coração tinha mania de só querer escrever quando sentia vontade. Aliás, ele dava de gritar, fortemente, com ar emprestado do vizinho pulmão. Já que era um coração de mulher, fazia-se flor.

Despetalava-se nas letras, ali postas, redondamente, retamente, certamente... Flores estavam por toda a parte. E não sabia sobre o que escrever. A primavera não tinha acabado e já lhe era crônico falar tão delas. Podia falar da nudez do eu, mas cansar-se iria, e lhe era tão fatigante como amar.

Viu que escrever gastava o coração, assim como amar. Disseram que lhe faltavam ternura e confiança. E era verdade. A verdade era forte, e tão pronto não parecesse, ia lhe comendo, inconscientemente, até lhe faze escrever asneiras numa tela de fundo preto. Anormalidade.

“Essa menina é toda ao contrário”, seu pai lhe dizia. Não apenas por deixar o ventilador ligado no quarto vazio, enquanto dormira na noite quente com ele desligado. Mas sobretudo pelas roupas coloridas, pelo jeito temperado, pelas falas desvairadas e por não querer ir à missa no domingo à noite. Viu que ele entendia mesmo das coisas.

Gostava tão plenamente de ser assim, avessa, quanto gostava de escrever besteiras troçadas na página negra. Lembrou de quando era criança e queria ser negra. Achava tão linda a cor morena. Parecia-lhe até, que quando tocava o braço da amiguinha, ele era mais macio, mais carinho. As vozes dos cantores eram mais lindas, e o cheiro da mãe era mais belo. Não tinha o balanço de samba que a amiga tinha. Nem os cabelos tão lindos e negros que completavam a pele escura. Era pois, amarela, sem graça, sem samba, sem cheiro, sem voz ou maciez.

Um dia ouviu dizer que os negros envelhecem mais devagar. Lembrou da avó, e de como ainda era jovem e bonita. Depois foi sabendo das coisas. Navios, porões, correntes. Conheceu orixás, terreiros, origens. Teve sorte. Invejou tanta força naquele sangue que também corria em suas veias. Ficou feliz por saber que sempre foi negra. Deviam ensinar essas coisas direito na escola. Ficam fazendo frustração em criança. Maldade.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Dizem que as flores nascem na primavera...


Dizem que as flores nascem na primavera. Como por aqui, esse negócio de estação do ano é besteira, me conformo em usar do título e da forma. Seja nos textos, nas roupas, ou mesmo, nos amores vividos ou não.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A partida / A tormenta







A partida

Já não mais via explodir estrelas nos olhos dele. Mas foi quando viu marasmo naquele meio-dia que sentiu algo dentro de si estremecer. Falou curto, até feio, como já tão bem a habituara. Sentiu como se comesse catchup c
om gengibre. Um gosto de culpa e incapacidade fechou e ardeu sua garganta.

-Não dá mais!

Ele soltou límpido. Calada, ela sentia-se morrer.

- Se você quer assim...

E juntando primeiro roupas, tão bem espalhadas por todo o quarto, ele se irritava.

- Você viu meu modem?
- Está no bolso da sua mochila.

Ela começou a juntar os cacarecos tecnológicos e efêmeros que tanto deram prazer e felicidade momentâneos ao ser amado. Seria ela só mais um, perguntou-se. Buscava oxigênio, tanto para evitar que aquela água toda se caísse, como para continuar existindo, respirando. Crescia os olhos. Sentou na cama. Investigava cada ação supranervosa daqueles dedos trêmulos que noites atrás passeavam por ela.

- Você viu aquele par de meias ver...?
- Tá na segunda gaveta, do lado esquerdo.

E perseguia com os seus, aqueles olhos que evitavam lhe fitar. Como era lindo aquele olhar. Como foi lindo quando, por uma força maior que brotou dentro dela, não mais teve medo e o encarou, enco
rajando-o. Na festa, no quarto, no altar.

Queria poder pedir ao menino travesso destino para deixar de lhe jogar pedras naquela frágil vidraça, que ainda chamava coração. Levantou a cabeça e gritou com o olhar. Queria mesmo gritar ali, jogar-se a seus pés, pedir que ficasse, que repensasse, que a amasse indefinidamente, que tivesse um filho com ela, que...

- Amor...

Aquele quase
amor pronunciado pelos lábios elásticos que ela amava a fez saltar de seus devaneios. Mas sabia que a chamava assim por hábito. Puro, estúpido e assassino hábito. Ele se refez do ato falho e perguntou outra pergunta qualquer que ela não escutou, porque descobriu que perdia os sentidos. Descobriu ali que era ele quem integrava os seus sentidos. O mirou:

- Oi?
- Achei!

Eu até cantaria pra ele se assim me pedisse, eu até passaria o dia fazendo compras se assim desejasse, e
u até pegava a cerveja na geladeira se... E logo um pedaço d’água partiu a dignidade que tão bem estava protegendo-a. Depois um soluço, seguido de outro e de um punhado deles, convulsivamente, escondia-os entre os dedos.

Ele a agar
rou imediatamente.

- Meu xuxu, eu não queria que fosse assim...
- Não estou pedindo nada a você. Só não posso evitar, só isso.
- Não chora, assim você me deixa triste.
- Você já está triste, só está se protegendo atrás dessa indiferença toda inquieta.
- Você sabe que eu...

Ela arrastou a mão pelo rosto molhado, enxugando-o parcialmente. Embora ainda sofresse, uma paz a fez vibrar um pouco.

- As chaves do carro estão na mesinha do lado do sofá. Depois a gente discute sobre as coisas pequenas, já que não temos crianças por quem chorar.
- Minha flor, como eu queria...
- Adeus
- Te ligo!

E ele terminou de juntar as mesmas coisas que eram dele, quando ele era dela. Rumou para a porta.

Ela ficou ali, sofrendo com a ida dele, parada, dormente, partida.










A tormenta

Sentia que a vida estava muito completa. Nada era emocionante naquela perfeição toda. Amava-a e sabia que tudo estava indo tão puramente bem que era sacal. Pôs em prática a decisão na hora mais quente do dia. Falou curto, até feio, como há alguns meses andava fazendo. Viu névoa nos olhos dela. Mas evitava a olhar.

-Não dá mais!

Ele soltou límpido. Calada, ela sentia-se morrer.

- Se você quer assim...

E juntando primeiro roupas, tão bem espalhadas por todo o quarto, ele se irritava.

- Você viu meu modem?
- Está no bolso da sua mochila.

Ele não podia acreditar como o amor da sua vida estava ali indiferente, juntando suas coisas mais caras e mais legais. Seus prazeres de horas, aos quais ela vivia o recriminando. E agora ela estava ali, catando-os, como num ritual. Mesmo olhando sorrateiramente para ela, enxergou nervosismo naquele corpo esguio, que parecia trêmulo. Aquele corpo que ele tanto amava, que lhe sorria impecavelmente. Como a adorava. Seu jeito, seu porte, sua inteligência.

- Você viu aquele par de meias ver...?
- Tá na segunda gaveta, do lado esquerdo.

Achava inacreditável como ela poderia ser tão organizada, tão metódica, tão sistemática. Ele arrastava-se pegando cada coisa, embora vez ou outra, a visse sentada, com aqueles olhos pequenos. Como os amava. Desde que naquela festa escura, eles se iluminaram à medida que eles se paqueravam. Até como o olhava antes de dormir, carinhosamente, pedinte, intimadora. Ou ainda quando esqueceu-se que era um, pra ser dois.

O desejo de ficar queimava-lhe o peito. Mas quem sabe aquilo não fosse o melhor para ambos. Não queria admitir pra si próprio, mas custava segurar o coração que pulava danado, feito garoto tinhoso querendo fugir. Acreditou loucamente que a separação seria o sopro de confetes de que precisavam. Lembrou do tempo em que esteve na marinha, e era como se um daqueles nós que apreendera estivesse agarrando as suas cordas vocais. Soltou:

- Amor...

Como pôde ter dito aquilo. Iria chamá-la pelo nome. E sem querer chamara-a de amor. Era tão dolorido chamá-la pelo nome. Não era só hábito, era um vício constituinte do amor que se agrega na linguagem da pessoa. Ferida inconsciente. No fundo, não estava mentindo. Tinha, desesperadamente, que perguntar qualquer besteira para disfarçar seu ato falho. Falou e ela pareceu não o escutar.

- Oi?
- Achei!

Ele viu que ela estava mesmo trêmula, notadamente. Porque a fazia sofrer assim, perguntou-se. Porque se fazia sofrer assim, perguntou-se. Lembrou dos tempos primeiros e dos seus planos. De como a amava pelo que era, pela beleza cheia, repleta de espertezas e aspirações, por sua vontade de salvar o mundo e por como tratava tão ternamente as pessoas. A quis exultante, a queria exultante. Caiu dos seus pensamentos quando ouviu um soluço da mulher que mais amava na vida. Correu para acalantá-la.

- Meu xuxu, eu não queria que fosse assim...
- Não estou pedindo nada a você. Só não posso evitar, só isso.
- Não chora, assim você me deixa triste.
- Você já está triste, só está se protegendo atrás dessa indiferença toda inquieta.
- Você sabe que eu...

Antes que ele tivesse coragem para juntar os pedaços de sua vida no chão ou enxugar o rosto molhado dela, ela mesma o fez. Mas viu o rosto dela se iluminar, preocupando-o.

- As chaves do carro estão na mesinha do lado do sofá. Depois a gente discute sobre as coisas pequenas, já que não temos crianças por quem chorar.
- Minha flor, como eu queria...
- Adeus
- Te ligo!

E ele terminou de juntar as mesmas coisas que eram dele, quando ele era dela. Rumou para a porta.

Foi só quando se viu de costas, que um pedaço de água arranhou desde o olho até o canto da boca. Pegou o carro e durante todo o caminho, a vida ficou cinza, embaçada, tormenta.


domingo, 11 de setembro de 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Varreduras sem fim


E já tinha varrido uns pedaços de pensamentos imbecis, caídos ali no quarto. Deixou de remoer hahahas. Queria uma tristeza menos pesada. Foi que lembrou que o querer é pouco caso pra quem fica paradinh@. Viu que tinha muitos bibelôs e todos olhavam pro nada. Viu que tinha muitas cores, mas nenhuma lhe ardia nos olhos. Viu e vendo, pensou que podia ousar, como já lhe dissera em quadradinhos, Alan Moore.

Tinha uma cortina de quarto, florida e gaiata, que ia e vinha, revelando lembranças que não queria ter pela frente. Podia se disfarçar de ameba, mas mesmo as amebas, criminalizadas que são, deviam sofrer por não saber o que eram, e não saber o que era saber. Enfim, no fundo delas, na sua assexualidade, incapazes de amor que eram, deviam sentir alguma coisa parecida com falta dessas coisas que a gente gosta e odeia.

Se tudo é só ponto de vista, então o nada é tudo, se eu quiser que seja, concluiu. E olhou pra cadela que vinha em seu encontro, olhos lindos, chocolate, focinho pedinte, afeto demonstrado no rabinho balançante. E viu pureza ali. Lembrou de São Francisco, lembrou dos laboratórios, lembrou de Madagáscar. Deixou de fribilar hahahas. Era muita coisa perdida, por se encontrar. Era muita coisa achada, por se perder.

Dar unidade á ideias dispersas era tão sacal quanto conversar com eles ou ouvir Lulu Santos. Era melhor assim, caos bonito, pensamentos jogados, confusão faxinada de si. Resolveu que ia comer dicionários para dar-lhe sustança pro mais a frente. Mas recordou que tinha de ir com calma, pois que se lhe sobrassem versinhos, pedantismo cruel podia parecer. Tomou por acatamento, retardar a refeição para mais além.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Farsa histórica, número de vida, dia de ócio, amor e mudança


Era 7 de setembro. Faltavam sete dias para o seu aniversário e, do fim de seus dezessete anos, decidiu que era dia de errar. Encontrou-se com o namoradinho, primeiro na vida, e fez dele primeiro naquilo que ele tanto pelejava conseguir.

Despediram-se dos amigos e caminharam naquelas ruas frias, ainda cheias de mato e casas bucólicas. Na cidade mocinha, assim como ela, trocava ternura com aquele seu primeiro homem. Tudo era nebuloso ao redor, menos o calor que emanava deles. O abraço do menino, que era quase meio metro mais alto que ela, a confortava rumo ao que sabia a esperar.

Desses jovens que se beijam loucamente em qualquer esquina da cidade, repetia hábitos, mas dessa vez, a esquina, ou mesmo um muro escuro, não seria suficiente para ocultar sua travessura.

Sabiam da existência daquela vilinha de casas, cuja construção ficara inacabada há alguns meses. E cujo mato aflorava dando ar de natureza aos tijolos cinzentos. Era naquilo que um dia poderia abrigar alguém, que escolheram recanto. A noite já despejava escuridão no lugar e por sua lembrança passou uma letra da música cantada na infância. Segurou-se para não pronunciar os versos “era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela não...”, quando o braço forte que tão bem conhecia a puxou para o que seria outro compartimento.

Estavam ali, sós, entre quatro quase paredes, altas o suficiente para escondê-los da rua e dos olhos passantes. Ali, em pé, beijavam-se e conversavam. Ele, insistentemente carinhoso, talvez a amasse, mas queria um amor concreto. Ela, relutante, desfazia suas investidas com medos confessados. O teto que tinham era de um preto bonito e intenso, respingado de brilhinhos, aos quais chamam estrelas. Vez em quando, encaravam a noite e tomavam banho de luar.

Foi numa tal hora que outros dois rostos, também tão jovens, pisaram mato e olharam para eles. “Tá ocupado”, riu-se o garoto, já saindo com a menina à mão. E do palpitar de coração mútuo voltou-se o silêncio. O casal não deixou de rir também. Esmagaram o constrangimento num beijo rouco e não tardaram a descobrir-se, juntos, sem pressa.

Ele se espantou por sua pele tão branca, tão branca de lua, e a amou. Ela provou coisa que nem sabia existir tão forte. E perdeu aquilo que ninguém devia guardar. Perdeu num abraço acalanto, num beijo torpor.

Apanhou roupas e arrependimentos, repensou-se. Refletiu como farsas históricas podem marcar dias de ócio para construir pontos de início, pontos de quebra de eus. Nunca escondera da mãe que se entregaria por amor, o que não era sinônimo de esperar por sacramentos que ela não pensava querer pra si. Desde então reformulou conceitos. Concluiu que o amor é sempre feito em destroços.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Porquês entre Beauvoir e Balzac


Ele jogava sal no seu amor. E ela, boba, chorava letras molhadas. Via bolhas coloridas e não sentia vontade de sorrir. Desenhava uma mandala e abominava seu próprio coração. Cruelmente sentia desfalecer esperanças, que não sabia por que cargas d’água ainda figuravam verdinhas. Já deveriam estar murchas, tristonhas. Aplicar-lhe iria a eutanásia bendita, se coragem tivesse pra tanto.

Um grito mudo e longo brotou-lhe do peito, saiu-lhe da boca cansada, assoprou o nada e estampou agruras em sua mente. Sentiu-se fatalista e breve. Sentia, sentia, esse era seu grande problema. Poderia romper-se sem dores ou prolongamentos de ilusões hiperbolizadas. Mas não. Ficava ali se carcomendo. Entregar-se iria ao pensar. Racionalizaria sentimentos, perderia bondades, negaria o necessário para a sua própria felicidade mal-grada.

“É tão fatigante detestar-se alguém que se ama!”, lembrou da cortante frase de Beauvoir. Mas não se considerava ainda uma mulher desiludida como no livro que lera há tempos. Ainda. Podia até ser a balzac-anamente mulher abandonada. Mas não se pode ser deixada por alguém que não se tem. Frustrava-se.

Como queria ouvir aquele “sois para mim a única mulher no mundo”. Mas não. Lembrou que a distância, dali a alguns dias, afastaria esses pensamentos permenorizadores de seu eu estúpido. Tentou se concentrar nas obrigações que a busca do futuro lhe impunha. Foi se questionar sobre os rumos de sua vida. Ai, como existir dá trabalho! Lembrou.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Queria ver meu gato bêbado



Sempre tirânico, me olha assim displicente e ágil. Gemido irritante, rosna carinhoso, pede abrigo no colchão. A noite pinta seus olhos de um preto mais cheio, mais belo. Dá ares de ternura. Arranha o sofá, como quem diz ter preguiça de viver. Como quem lembra de um passado egípcio de glória. Como quem sabe do poder que um dia pôde ter tido.

Sempre olha ternamente, pedinte. De comida, de água, de carinho, aconchego. E é todo formoso, elegante. Mesmo na indolência mantém uma dignidade aristocrática. Esnobe. De dia, o olhar é frio, de um preto riscado no azul celeste emoldurado no pêlo curto e branco. Maciez. Se estende no tapete até que sua companheira preta, linda, Tulipa, o venha incomodar. Inflada de birras, olhos saltitantes, linguona pra fora, morde o rabo indeciso do bichano lânguido. São opostos que se impelem em disputa dicotômica.

Preto, branco. Excesso, comedição. Alegria, classe. Minha cachorra, meu gato. Mesmo, quando eles correm um atrás do outro, de tamanhos pares, rumo ao nada, me apetecem. É só ai, que a altivez felina se quebra. Tem de fugir da cadela, linda, fofa, feliz. Tem de sair da posição impelida, queixo erguido, patas juntas, corpo simétrico e se jogar no jogo gato-cão. E mesmo depois, não aparenta cansaço. Língua guardada, músculos ao comando, olhar penetrante ou molenga. Queria ver meu gato bêbado. Talvez ele parecesse mais feliz. Mas quem sou eu pra tentar entender felicidade de gato.