quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Quando me comprei


Quando me comprei, numa esquina dessas iluminadas, a vida estava fria. A transação fechou-se duas quadras à frente, em aparatos, acessórios, coloridos. Tive medo e receio, de querer trocar-me, por defeitos de fábrica. Não seria possível. Desde sempre venerei as liquidações. E ali estava eu, mais uma ponta de estoque. Dado preço justo, sem pechincha, dignidade. Modos mudados, cabelo em enlace, vestido alterado. Os olhos enxergavam mais que o necessário. A hipersensibilidade aliou-se a fotofobia humilhando a luz daquela manhã tão bela e feia, com um par de lentes elegantes, piratas, escuras em dégradé.

Quase me vi num outdoor ao longe, mas a imagem mudou em paralelepípedos, tão certo pisquei lentamente. E ia andando a contemplar a beleza diversa. Vozes hostis explodiam daquelas vitrines libertárias, mundanas, pedintes. Analisei que necessitava de tudo aquilo. Completariam meu ser, preencheriam meu vazio. Pelo menos nas próximas duas ou três horas.
Sacolas e satisfação pesavam mútua e promiscuamente. Defronte a marca esbelta, o manequim se fazia de mim. Criei naquele momento a situação em que a roupa seria adequada. Mas são tantos os dias na vida. Sempre poderia trocar-me.

E os trapos semi-comprados já não mais me iludiam. Desconsiderei o peso que subira e forcei-me às fronteiras dos meus três eus obtidos.
E o salário, já não mais existia. E os três meses adiante se viam do mesmo modo comprometidos. E aquilo não era culpa minha. São as necessidades, o que se pode ser feito? Comprar-me, comprar-me, comprar-me. Satisfarei-me assim que preciso. Sempre foi assim, por que há de mudar? Me dizem que assim o é. Me declamam que compre-me. Me cantam que compre-me. Me insuflam que compre-me. Como eu hei de resistir? Se é simplesmente fácil me entregar. “Fazer compras é um delícia!”, eis a mulher moderna. Que as dívidas fiquem, um dia passarão. Tudo passa. Não é mesmo? Que delícia comprar-me. Ver-me em cores, tatos, futuros boatos. Sentir-me completa por aqueles quinze minutos. Très Chic!!! O cheiro do novo. Nem que morra-me de trabalhar. É para isso a existência de uma mulher. Para que mais poderia ser. Agradar seu homem.

Estar sempre bela. Unhas esmaltadas, pés e mãos. Cabelos perfeitos. Rosto habilmente maquiado. Cílios feito garras. Roupa a cada dia mais propícia, de gerar comentários. Agradar seu homem. Estar sempre bela, etc, etc, etc...
Adoro comprar-me. Me satisfaz. Repetir-me, só em comprar-me. Em esquinas iluminadas. Trés Chic!!! Os pés são fundamentais. A vida é isso, garanto. Estar sempre bela é preciso. é tudo maravilhoso. A vida é uma fantasia. Mulheres lindas, homens galantes. Você não assiste novelas? Basta ligar a televisão para confirmar. E as pessoas em casa se não o são é por que não o querem. Obviamente...

São uns acomodados. Tem tudo a disposição, podem comprar-se também, a qualquer hora, por qualquer preço.
E isso é pura verdade. As melhores marcas são ignobilmente imitadas, estão disponíveis a todos. Todos. Democraticamente. Tente, compre-se. Seja feliz você também. Encha-se de dívidas, elas passam. Há, você já faz isso? Então você já prova de deliciosas pílulas de felicidade. Você não está feliz? Ora bolas, trate-se. Ou melhor, compre-se mais e mais. Você deve estar comprando-se pouco... Tente, compre-se. Seja feliz você também. E enviou o e-mail ao amigo publicitário. Riu-se inteira, por ter escrito aquela bobagem só como pilheria dele.

Cara até culto, que se submetia ao empreguinho ludibriador de massas. Eram assim desde criança. Ele, sempre gostou de gabarolices, inventividade, mentiras propositais. Ela, sempre presa ao real de despropósitos, aos fatos mais sensíveis, aos afetos mais verossímeis. Refletiu. Do jeito que ele era, seria até capaz de usar o texto em uma de suas campanhas, aplicando ai uma falácia de apelo a verdade com recursos irônicos. Teve medo. Correu para o telefone.

sábado, 18 de dezembro de 2010

PARTE I - Batida. Tropicão, de limão, cardíaca


E era como se visse seus pedaços no chão, depois de explodir de alegria. Estava ali, arreganhando um sorriso. Dentes alvos, lábios médios, aurora, amanhecer de felicidade. Lascou um punhado de blush, embora não precisasse, posta que estava naquele estado bêbado. Não, não tinha comprado doces, redbulls, ou mais drogas legais, divertidas, voadoras. O azul-lágrima nas unhas era revoltantemente tentador.

Afinal achara mais uma vez o amor da sua vida. Tudo nele era perfeitamente estimulador. Era uma fruta, um cera, um imã. Boa pegada, conversa de gente das letras, barbinha por fazer – maquinalmente preservada a cada semana -, estilo esporádico, um dia pra cada Chico. Soltadas poéticas, coxas grossas. Panturrilhas. “Meldeus!”, dissera pra confidente que perguntou sobre esse ponto, achado por ela primordial. Masculino. Fato. Estudava nas madrugadas, quando não estavam se amando. Amavam-se nas madrugadas, quando não estavam estudando. Sexo sem nexo. Cabelos jogados. Propositadamente despenteados. Um charme. E aquela unha bem cuidadinha, metrossexual de plástico. Ulálá. Aprovadíssimo.

E tropeçou na rua, desastrada que era. E a pedra no caminho vassourou aqueles pensamentos. Fez-lhe sentir dor. Era muito prazer pra que ela pudesse deter-se naquela topada. Seguiu, sem ver o sangue que a desconcertaria mais a frente. O moço da calçada veio em sua direção. Moça, seu dedão tá sangrando. Não era hemofílica, era dormente mesmo. Estava dopada da noite passada. Oi?.. Seu pé! Valha. Soltou, embora não estivesse ligando muito praquilo. Deixa eu fazer um curativozinho. Não, precisa não. Moça, tô quase me formando, ninguém me dá estágio, e você se recusa a que eu faça um simples curativo em você. Ave, depois disso, não podia recusar. Tá com pressa? Não, tô não, mas... Nem deu tempo, ele puxou levemente o braço dela pro banco na parada de ônibus a três metros. Tirou da maletinha, o esparadrapo e se jogou no labor. Diabéisso, assistência médica express, no meio da rua, sem a gente pedir. Pensou.

E a louca começou a rir. Não, não passa mertiolate não. Vai manchar minha sandália. Psiu! Eu sei o que tô fazendo beibe. E pluft. Ai, tá ardendo. Menina como você reclama. E ele segurou seu pé tão sutilmente, que ela se sentiu acolhida. Reparou na cena em que estava imersa. A louca começou a rir. Do que você está rindo? E os olhos verdes foram de encontro ao dela. Oi? E ele entendeu. Pronto. Que loucura né? Nem me toquei da topada. Vai saber... Agora tá melhor. Você estuda aqui? Não, na faculdade do lado. Ahhh. E faz o quê? Moço meu ônibus tá vindo. Desculpa. E... Ai... Brigadão viu? Até... Brigaaada... E escorregou pra dentro do ônibus que parecia querer vomitá-la de tão satisfeito de gentes que já estava.

Doida. Valha, ela esqueceu o livro e a agenda. Flor. Égua, nome estranho... não, bonito. É. A mãe dela devia ser hippie ou alguma coisa assim. Tipo vegetariana. Bem bonitinha. É. Louquinha, mas bonita. Ei, tem um telefone aqui. Pera, são... hum, ela deve estar vindo da aula. Deve pegar ônibus sempre nesse horário. E pegou aquele ônibus. Amanhã... E saiu cantarolando, altistando numa bateria imaginária. Nossa! e aquele pezinho... Amanhã.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Nojo



O negro da roupa sugava aquilo que ele não queria. Algo como auto-proteção. O cabelo desmanchava-se na testa marcada por rugas rasgadas, precoces, insanas. Furou o ar com a baforada típica do marasmo que se seguiu. Engasgou, o vício era prazeroso e confortante. Ainda era dia e aquilo assustava. Aquilo. Tão forte e fugaz quanto uma luta de verdades. Entrava pelas casas, batia pelos rostos, se destrinchava em cores. Os olhos ardiam só de pensar.


Avançou pelo escritório, pensou em voltar, conteve-se. Teria de ir e encarar, mesmo que pelo caminho de tempo, aquilo. Ajeitou e tirou da camisa esfulepada a armação que lhe amenizava o sofrimento. Quadrada e preta, bem preta, foi sucesso décadas atrás. Sucesso agora também por diminuir a latência do horror provocado pela coisa estúpida e clareadora. Traçou a porta, driblou o corredor e pela janela ela já dava sinais mórbidos de vida. Nauseou-se. Era tocar-lhe mesmo que levemente, para arrepiar o gogó de macho estridentado. Ia aumentando à medida que se aproximava de fora. Era asquerosa. Lembrava de quando criança, como o escuro do quarto era acolhedor. Já vestido dos óculos de sol, levou a mão ao rosto naquele embate com o monstro que lhe afetava tão sonoramente os nervos e a pele.


Agora ela cobria-lhe, e não havia mais nada a fazer. Abraçava-lhe suave e tristemente. Recoberto por ela, ele apressou-se em passos bêbados de um sangue sem álcool, sem cor. A sensação era monótona e cruel. Não comprometia apenas as córneas astigmatas. O formigamento passava para o rosto. Sentiu nojo da luz. Aquele brilho era desconcertante, peçonhento. Naquele dia, especialmente, a percepção era mais firme. Detestava aqueles feixes que acertavam-no. Tiros de caos perfurando a camisa, as vistas, seu orgulho.


Sempre ouvira falar que as pessoas enojavam-se das coisas escuras, feias, omissas. Quase um racismo naturalizado. Com ele era diferente. Bebê, estranho que foi, adormecia com a luz da lâmpada a encará-lo. Era como um desafio, quem poderia adormecer primeiro, ele ou a luz. Ela sempre ganhava. Depois descobriu que a mãe era a culpada por sua derrota diária.


Pela calçada, o corpo estrebuchava internamente, ele suava. Não pelo calor, mas ela claridade. Tão brilhosa, bela, destruidora. Apertava-lhe, roubava-lhe as poucas energias. Não tinha para onde ir naquela hora. Vag[eu]ou. Os pés em pânico, já que descobertos em chinelas de couro traidoras, custavam a levá-lo. Asco sentiu mesmo foi daquela grande ferida repugnante que abocanhava o céu e seus couros. O sol. Emitindo ondas malévolas, consumidoras. A cefaléia parecia crônica e lhe deu mais ojeriza. Sentiu na boca o gosto da luz. Terrível, uma mistura de suor e confirmações de sofrimento.


Tropeçou nos pensamentos de aversão e caiu numa poça de lama. Escura e fria, ela o aqueceu. Dotou o rapaz magro de uma calmaria marítima, uterina. Não quis se levantar. Espalhou-se. Recobriu-se do barro. Era sua armadura contra a luz. A poça tinha um odor que incomodava. Mas não a ele. Parecia dançar por dentro. Já todo vestido de lama, sentiu algo afagar-lhe o cóquis. Ia subindo espinha acima numa carícia de arrepio, uma massagem de patinhas, já identificava. Levou os dedos direitos às costas e agarrou o ser. Trouxe-o a frente. Os olhos arregalados do bicho lhe passaram uma ternura medonha. Estrebuchando entre os dedos magros e compridos do rapaz magro e comprido, o réptil parecia querer fechar os olhos diante da luz que incidia nele. Não conseguia. Compartilharam da mesma aversão. Ele e o calango. Ali sujos de lama. A terra ia perdendo a umidade por culpa do claro solar. Desejou tapar a ferida.


A vida escurecia. Talvez, por seus desejos internos. E aquela bola branca embaçada que ele tanto adorava se apresentou acima dos olhos, seguindo-o. Foi pra casa, pelos becos que já conhecia mais sombrios. Feliz. Pôs o calango no antigo aquário do peixe. Agora tinha um amigo. Questões de afinidade.



segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Corrente...


Não, não é uma questão de memória. Sim, é tudo uma questão de memórias. Simples como um factóide na avalanche informacional. Duro como um fluido influxo de conceitos solidificados, cristos. Tensões subvertentes. Oito.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Capítulo 3- E no príncipio era assim...


E-eu te amo. Pensou. Hoje descobrira de todo. Fora recortar uma foto dele para foto de contato no celular – coisas efêmeras, que não caberiam a literaturas que não passam - e se prendeu ali, com ele se sorrindo. “Quem mandou me olhar assim? Não pude evitar, tirou meu ar, fiquei sem chão, menino bonito, etc, etc, etc...”. O.K. Tava ouvindo Céu demais. Mas à sério, por esses sentimentalismos fajutos que já a permearam ficava confusa. E lá permanecera ela, usando o teclado no lugar de ir dormir e perder o gatinho num sonho.

Nessa fase, que já não sabia mais, ele não queria, e ela sim. Dai a troca de tempos. Efêmeros, verbais, de tecido. E a música a iludia, num presságio do que estava por vir. E sabia que ele não acreditava nessas coisas. Contradição. Homem de pouca fé. Sabia, sabia. Não queria adentrar nesses méritos. Não me diz assim menino, que quer me consolar, que você me mata de vez. Se esvaia. E você que tanto gosta do verde, e das mulheres que o cultivam, por Deus. Destrói de vez essa minha esperança limão. Implorava.

Me diz, de novo e sincero, assim baixinho, que não me queres. Eu passo. Juro. E diz logo preu poder me alumbrar de vez e sofrer lamento profundo de não esquecer-te. Jurou-se a ele. Me fala logo que não sou pra ti, que não és pra mim, e não responde aos meus torpedos. E ela seguia no martírio semi-bélico. Pára com essa guerra que me mina. Amigos fazem assim eu sei. Sei de tudo e sei de nada, sei um pouquinho, mas quem mandou você me olhar cativo e me fazer flor feliz?

Culpou-se pelo homicídio que planejava ali, sozinha, naqueles pensamentos rendados, barrocos. Bandejaria a ele todo o seu sentir para então o menino de barba indecisa e adorável o esmagar com nãos insinceros ou com mentiras cabíveis de ostentação fraternal. Retardou-se para ver se estava mesmo a entregar-se naquela confissão suicida. Saiba você que... que... enfim, que posso mudar pelo que eu quiser. Já mudei, você percebeu, assegurou e garantiu que para melhor. Ora, por você... Tudo bem, sem mais arroubos literários inúteis. Não é assim que te provo ou convenço de qualquer coisa. Basta puxar pra tuas vistas meus olhos ao te ver. Puxa ai vai! #moçavermelha. Acabou e já colando o texto na mensagem que mandaria em 50 segundos, repensou porquês, avaliou comos, relembrou quems. Decidiu quandos.

Tinha coragem pra tanto. E como seria dali em diante? Refletiu. Amigo que é amigo resiste. Acrescentou um último, não se sinta obrigado a responder e, clicou, antes que se arrependesse, no frio ENVIAR. Consumado.