domingo, 31 de outubro de 2010

As palavras jorram...


Às vezes me pergunto como tanta dor pode caber num peito só. Feito roupas de um exército inteiro pra serem lavadas numa única bacia. Duma vez. É domingo após domingo, quando a correria semanal termina e já está prestes a começar. E vem o ócio, o refletir. Entristecer. É dor que não se satisfaz só em chover. É dor que fica palpitando sem porquês, demente, injusta, de loucuras. Perdas, vitórias. Estúpida. Eu e a dor. E eu podia abater o sofrer, antes que ele me abata primeiro. E o suicídio do meu eu se faz ideia. Já matei meu eu físico. Vou matar meu eu–lírico. Terrorismo individual, emocional, parada brusca. Roendo a unha. Rata dos meus próprios tecidos corrompidos. Perdi.

Vida tosca, de coisas-fatos sem explicar. Janelas do amanhã, desesperança. No alcançado, logo plana outro pesar. Dor. Imunda. Cheira a perfume da Avon. Podre como o capitalismo. A mão dói, a cabeça dói. O peito volta a doer. Fingindo ser um romance novelle vague, quando não passa de um trash movie dos anos oitenta. Perder anéis. Ser picada por abelhas. Emocionantemente brusco. Insólito. Pensar com o órgão certo, essa é a resposta pro sofrer menos? Mas as ordens são dadas em outras instâncias. Visceralmente. Baixos instintos. Humanos. Doces palavras sujas que teimam em pular de mim, me possuir, ressuscitando meu eu, meu devir, porviniano. Extremo. Recrutadamente num militarismo patético.

Escrevo na construção entediante de um transe epilético doído puro. Mas como droga, teima em não aliviar. Avalia a dor, que cristaliza, consome. Vai explodir. Sou fraca demais para descrevê-la. Esses devaneios que o teclado não alcança, num imensurismo fatídico, dão náuseas. Livrar-me-hei delas no digitar. Não saem, são noda de caju. Amputar as dores com facas de xingamentos é inútil. Feito estrelas, sentimentozinhos, se rematerializam em abstrações que são. E mesmo nesse estado insano, de tocar teclas, com dedos desesperados, o silêncio, só cortado pelo forró brega antigo ao longe, as extremidades do sofrimento não são tolhidas, moldadas, podadas. Frutos. Desconhecer. Ludicamente, a busca pela ritmia textual equivalente a perfeição sinfônica é o que há pra hoje. Linguagem equivalente ao que os ouvidos captam ao fundo. Batidas feias. Nem os ritos pontuais seriam suficientes. E as palavras jorram. Sinto pena delas. Reflexo. Purificação.

sábado, 30 de outubro de 2010

PARTE I - Foi


Concentrou-se na janelinha que piscava. Berrava. Lá vinha ele outra vez. O pequeno círculo verde não era sinônimo de outras disponibilidades. Responder monosilábicamente sempre funcionava. Tentou. Nada. Tenho de ir agora. Digitou abreviadamente. Dois pontos, asterisco. Será que ele merecia? Titubeou. Levou em conta a banalização de tais expressões afetivas pontualísticas e afundou o indicador no <>. Arrematou com um tchau. Oh, como odiava os emoticons automáticos. Enfim.


Rumou com aquela extensão de seu braço à opção sair. Subitamente mais uma janelinha azul céu triste ascendeu. Sentiu mais vibrações tremerem suas carnes do que quando soube da possibilidade de se mudar pra longe. Quase viajou mesmo naquela hora, porém sem sequer levantar um dedo. Esperaria. A ansiedade não podia transforma-lhe num desses exemplares <<teens>> de aflição disfarçada de atitude. O pior aconteceu. Pelo menos foi o que avaliou na hora.


Viu vagarosamente – feito filme brega em slow-motion – crescer o retângulo fulgurante. No centro dele, um cheguei boa noite. Demorou um pouquinho. E foi lá procurar as letras de uma resposta descomprometida, inocentinha. Boa, soltou. Como a senhorita está? já pousou os olhos sobre o céu pretão que tem um buraco lindo e branco que reluz?. Ele pegara pesado. Pensou, e no pensamento mesmo, deixou escapulir um desembuchado palavrão de cinco letras. Não poderia ignorar. Foi lá e meteu na caixinha um puro e simples não. E prosseguiu. É foda como nesses nossos tempos a gente fica sabendo dessas coisas belas, naturais, dessa forma. Pronto, calculou. Pois devia preencher esses seus olhinhos lindos com aquela bolinha redonda, gostosa de se ver. Por que ele era assim hein? Tá, vamos lá, e preparou os dedos ágeis. Pois é, pouco tempo, vida cheia, trabalho até a noite. E quando a gente sai, só dá tempo de ver o fulgor do letreiro do ônibus. O jeito é acenar e rezar prele parar. Foi o máximo que conseguiu.


Então esse tumulto diário precisa de descanso beibe. Posso te relaxar com minhas metáforas bestas hoje à noite? Tudo bem, era tudo que ela queria, todavia aceitar assim de primeira... Nãaao. Ok, ok, pendeu o que seria em outra oportunidade um cotoco sobre o <> e o dedo mínimo sobre o <>. E ficou brincando num balanço automático. Casou essas letras em oito pares, achou digno e confirmou. Haveria tempo pra pensar. Ai, como odiava essa instantaneidade aparentada. É, tudo isso me deixa cansada. Arrependeu-se. Além das metáforas, posso lhe oferecer metonímias, massagens, ironias, e um jantar comprado que vou fingir que fui eu que fiz. Que tal? Era realmente irrecusável. Tenho que ver, ponderou. Só te lembro que eu não tenho diabetes, e a sobremesa é por sua conta. Vai trazer o quê? Tá bom xuxu, você me venceu pelo cansaço. Pelo cansaço mesmo. Te busco às 21h na sua casa docinho. E veio logo aquele está <>. Manipulador como sempre.


O relógio caminhava rapidamente e só lhe presenteou com indignos 83 minutos. Que horror. Resignou-se ao banho curtíssimo de 25 minutos. Unhas, maquiagem, cabelo, sapatos, ok. A roupa era pra manhã. Perfeito. Um vestidinho oriental. Tinha que latinizá-lo. Deu acessórios rubros. Estava pronta. Tinha ainda 12 minutos. Abriu o celular pra confirmar a hora. Nem deu tempo. O número jazia lá. E a música que reservara pra ele papocou sonoramente. Jantou sua ansiedade e deixou tocar mais um pouco. Quando a música e a forte vontade de roer a unha que acabara de pintar lhe consumiam fortemente, aceitou a chamada. Ensaiou um hey boy , já tô indo. E foi.

domingo, 17 de outubro de 2010

Pintou pra morder...


Pintou pra morder. Vermelho, fogo, vampiresco, almódovariano. Afunilou os olhos num delineamento espesso. Gueixou-se. Plantou flores no cabelo e nas pontas das orelhas. Escarlates também. Fitou-se num queixume hedonista. Virginiana, à espreita de tudo, de si. Achou coerência no respingar múltiplo da fragrância verdinha. Aplicou um último repasse no reflexo. Desligou o teledrama que ressoava falso-piegas na tela tediosa abandonada há duas horas. Rádio-novela. Vez ou outra mirava as cenas de um teatro hiperbólico e banal. Bocejava. Fugiu calmamente, sem esquecer-se da bolsa. Rubra. E foi-se sem rumo. Tinha encontro marcado. Há muito tempo.

Desmarcara com as amigas, remarcara com o caminho. Escolheu o lugar. Não sabia para onde ir. Escolheu o que sabia. Não sabia o lugar. Revirou-se em pensamentos. Tinha tempo. Quarenta minutos até que o ônibus chegasse ao ponto final. Decidira. Juntou seus encargos emocionais e saltou na parada devida. A brisa friinha da noite pintou na sua boca um sorriso. O mendigo pidão borrou logo em seguida. Foi feito chuva que dissolve. Feito eno na azia. Seguiu. O primeiro Martini lavou a tristeza por outrem. Dançar iria, até borbulhar. Esperava ser colhida.
A noite não era acolhedora para as moças coragem sozinhas. Escolheu. Olhares trocados, gestos sutis reveladores de boca e mãos, esquinas. O banheiro era a jogada final. Iria retocar suas pinturas em cores ardentes. Voltou pra perto do palquinho. Xeque -mate. Engenheiro, surfista nas horas vagas, ou vice-versa, papo de ácido. Novamente o banheiro lhe ajudaria. Sabia que não podia abraçar o excesso. Pena. Pegou um táxi. Espremeu-se e pediu para descer. O calçadão havia lhe assoviado, pedinte. Lá estava ele. Embora, ele próprio não soubesse. Ela tinha que pensar em alguma forma de puxar conversa. Sentou no banco duro de pedra. Ele parou encarando-a. Sua beleza é hibrida e completa. Soltou. Senta aqui e me conta o porquê. Ela completou rápida. E foram oitenta minutos ali, cento e trinta no barzinho. A carona até em casa, o convite pra entrar.

Ele era especial, não era pressas coisas. Não assim. Ele pediu o telefone. O aparelho metálico-amarelo gritou. É, ela queria, o número estava certo. Tá, ela o deixou entrar. O moço bonito tomou a cozinha pra si. Preparou café e ficaram depois ali, em brincadeiras árabes, de leituras de borras. Você precisa ir. Ela expulsou sutilmente. Você quer que eu precise? Ele pressionou de forma tão amável, semeadora de dúvidas, acolhida. Um último beijo. Era só um desconhecido que já havia lhe passado informações semi-pessoais. Deixou-o no carro. Selou.
No outro dia o cinema na casa dele. Transportador. Beijos e mensagens nos dias seguintes obrigaram-na a pensar no conteúdo do sentimento. Não queria cultivar. Embora sementes plantadas, podia podar raízes. Limites. Falaria tudo pra ele. Da sua confusão do inquerer. Do querer que poderia não ter futuros. Estava envolvida demais pra reflexionar. Estantes, instantes, vertentes. Foi ler. Ligou pra ele. Esperou seculares vinte minutos. Era o momento. Chicoteou sua puritanisse breguinha. Antes tivesse sido antes. Depois repetiu.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Capital do boi


É buscar, ê boi. É levar, ê boi. Espancar de carinhos as peles alvas do teu sofrimento, é fazer agressão ao outro lado do veludo de uma manta que não te cobre. Espantos. Desalento. A cantiga da noite faz libertar os dizeres do sistema. E eles ficam ai, soltos, voando mambembes. Não era para ser assim. Mas o querem. Poucos galhinhos irão se ramificar, dominando. Ê boi. Mas é na pontinha dos múltiplos que as flores desdobram-se de si para forjar beleza intensa. Abóia. Não é Caim. Isso por si só já não alimenta. Vai e volta. ê boi, sua mulher. Tão usada pelas bocas maldosas que a atribuem às deficiências humanas, escassez de belezas. Padrões.

Capital. Sem fé se chega lá. A crença tá certa, mas na medida errada. Os caminhos por onde andei são só as mesmas sandálias que agora acompanham meus pés sem emitir uma só palavra. Aprender de novo o que já foi até analisado, revisto. Aprender de outro jeito. Falta isso.

Relegar vergonha é sua sorte e prazer. Verdadeiras epífises cravadas no cordão umbilical do teu cerne. Explorador. Manipula-te a ti, nós, com a informação, que demasiada, alucina, verte. Instantes esquizofrênicos de lucidez dão ao teu gado momentos históricos de beleza estupefata. Quase onírica. Mas como sonhos, passam. Dá-se a natureza humana a tão encaixada desculpa. E voltas, insensato de destruição. Ê boi. Podia passar, sem contarmos os carneirinhos. Mesmo o mago-mor de invenções suicidas, recrimina a ti. Por pena ou saber de estados. Estado. Virgulas podiam cessar-te, por reconstruções mais metafóricas. Utopia. Que a continuem imaginando. É a esperança derradeira. Que sinos e chocalhos ressoem. Ê boi.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Tentações policromáticas de percepção. Não, não estava drogada...


Por que não se lembrou quando tinha sentido a última flor que olhara. Na passagem por algum terreno baldio? Tinha muitas flores por si. Era Flor afinal. No cabelo, no vestido, na sandália. Mas esqueceu a última vez em que tocara a maciez de uma verdadeira flor. Pouco tempo. Atenção dispensada a assuntos mais importantes. Tudo era mais importante. Não pintava mais flores. Não bordava mais flores. Não tecia mais flores. Pedras-caminho, estradas de terra que teimavam em empoeirar seus olhos cansados, chorosos. Menina.


Deixou o lilás de lado, pelo vermelho ardente. Essas manias de cores que perpassam a vida. Cromomaníaca. Monocromática. Fluidez, auxilio. Passou a perceber por melhor em que condições cromáticas os lugares e as pessoas iam levando. Notou. Ateou fogo na visão já turva das interpretações errôneas. Buscou se esquivar dos vieses políticos das cores. Flor, a bichinha tava tão cismada com essas peripécias da refração, que achou de en-di-rei-tar a santa da entrada. Manto azul, que coisa. Fosse assim, danada da esquerda, perderiam céus e mares, restando-lhe apenas o sangue, o pecado, o inferno. Antes isso que a calma passiva_conformista. Pensou. Passados tais devaneios estupefatos, foi tratar de mais associações bestiais. Menina.

Os elementos vitais - fogo, terra, água e mar – vistos de filmes, extrapolados, miticamente, estranhos, acabaram por parecer-lhe acolhedores. Não ia buscar filosofias do Seisho no Ie ou o feng shui. Era sistemática demais pra isso. Logo se cansaria. Embora o orientalismo já muito na moda desde algumas décadas a atraísse. Aprendeu a repetir uns mantrinhas. Enjoou. Era legal até que as pessoas começaram a olhar estranho demais pra ela no ônibus. Nada de espirais do silêncio. Já havia superado isso. Prometidas mudanças intempestivas a si própria, bailou com a meditação indiana. Até apaziguar seus foguetes nordestinos de personalidade dos trópicos. Desculpa.


Retratou-se com seu ego, na medida em que destruía a intolerância ao apego da pequenez. Nada de plásticos, diria. Um ou outro apenas. Tinha a desculpa da lógica de mercado na qual estava inserida. Tadinha. Concentrar-se-ia nas coisas miúdas, mas não nas do mundo, espúrio, infeliz, sim nos laços naturais, encolhidos pela crise do capital. Estranhou. Negócio de naturalismos. Tentou até ser vegetariana. Conseguiu. Durante uma semana inteira. Mastigou aqueles vegetais sem gosto, gosto de mato. Ow sanduichezinho horroroso aquele de molho de cenoura. Retorcia-se ao lembrar. As delícias da carne nunca lhe atraíram tanto como naquele rodízio de carne, na festa de aniversário do namorado. Antes, não provava maminhas, alcatras, bifões por pura despretensão. Agora, a lembrança da torta de beterraba a fazia salivar com um convite prum churrasco. Ode ao carvão.


Refletir é quebrar. Assim como quando a luz monocromática extirpa uma cor na refração, o pensamento se desfaz na variedade de idéias num plano. A luminosidade vai tornar a visão diferente. Seja em conceitos ou em tonalidades. Flor sabia disso agora. Partiria dali em diante com outros mantras e concepções mais eficazes na ponta da língua. Bateria na porta certa. Varreria caminhos com olhares buscadores de flores. E jardinaria os pedaços de sua vida carcomidos por ervas mais daninhas que em contos de fadas. Não, não estava drogada. Um pena. Era fraca demais para as ervas.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

E procurou até achar o que já tinha


E foi vestida da carcaça trepida de alegria. Não parecia, mas era mais fina que papel vegetal. Não tão translúcida, mas mais amanteigada. Preenchia-se com os vácuos de tristeza em ondas milimétricas que lhe tocavam o rosto ternamente. A dor do frio tornava o pé esquerdo travesso. Cessou. A música do ônibus fazia da paisagem, que corria vista pela janela suja, mera ilustração contemporânea de cinema trash. Figurativismo. Semi parnasianismo de deleites sofridos e estranhos. Bilac poderia descrever aquilo mesmo morto. Chico não estava mais aqui para isso. E ela não tinha poderes de escrever. Fato.

Poderia até psicografar o que o vento dizia, mas a zuada do motor do ônibus não estava deixando. E por cima de tudo, não tinha caneta nem vontade. Ninguém fica escrevendo besteiras, sentimentos, sopros de vento na Av. João Pessoa. Ainda se fosse um nome menos opressor vá lá. Tinha esquecido o livro democrático conceitual. Não ia se concentrar mesmo, com tantos barulhinhos que queriam lhe dizer. Sonhos, futuros, verdades.

Os saltos das rodas gigantes lhe traziam muitas lembranças. Sempre desejou companheirismos no transporte coletivo. Teve demais por alguns anos. Descobriu que se desejasse muito uma coisa, teria. Em excesso até. Enjoativamente. Por quê? Perguntou-se. Desejou muito, teve muito. Não há contradição nisso. Gostava de excessos. O mesmo lugar de onde vinha a concretização dos desejos estava lhe penalizando. Os egos errantes que não sabem crescer comedidamente recebem castigos. Todos garotos buliçosos. Breguices.

Saltou na parada devida. Esquina escura, tranquila pela lua cheia. Saudades dela, nunca mais havia a visto. Redondinha, faceira. Eram bobas as duas, a iluminar mentes fúteis, caminhos errados, mentiras consoladoras. E foi por lá, ultrapassando caminhões e mobiletes. As crianças da sua rua brincavam histéricas um futebol inventado. Sentiu ternura por elas. Apesar de não gostar de suas mães fofoqueiras, elas não tinham culpa. Fez figura de linguagem com os cabelos pras três mulheres sentadas no tronco tosco. Foi comprar um pastel na vizinha.

A flor-luar: por repetições contraditórias de amores


Nas profundezas Flor mergulhou a buscar a flor. A linda flor azul. Seu perfume embriagante, delicadamente essencial, destruía as vontades do ser que a inalava.

***

No centro da floresta estava a rocha. Uma áurea magnífica a circundava. Ia aumentando a proximidade e o esplendor que dela emanavam. A magia a possuiu. Os olhos queimavam num brilho refrescante e tentador. A atração se tornou mais forte. Magnética. Magnetismo dourado-incolor. Puxou. Lutar contra era impossível. Haveria dúvida de resistência? O desejo era surpreendente, mais do que qualquer outro.

Ouviu sons. Quase cantos. Era como se penetrassem nela. Emocionavam. Não sentia o materialismo. Estava em um plano diferente. Se é que poderia rotular assim. As luzes prismáticas surgiam. Como sentiu saudades delas! Brincavam com Flor.

A três passos estava a rocha. Fria, amorfa, melancólica. E ao mesmo tempo com uma vitalidade fulgural, sentiu o amor. Emoção, prazer, êxtase, o perfume. Estava muito perto.

Ajoelhou-se. Retirou a pedra do sacro-lugar. E lá estava ela. Sob a pedra, a linda flor. Azul. Com seus vários lábios. Flor a pediu, mas não a podia ter. A ambicionou. Mas não era dela. Não era de ninguém. Não podia ser propriedade.

Cumpriiu sua tarefa. Hipnotizada pela estonteante beleza a colocou no chão. No sacro-lugar. Ela deitou junto a sua mãe e adormeceu. Flor a protegeu com a rocha. Estará lá para outra eternidade. Até que alguém a solicite. E como sempre, ela generosamente, irá ceder uma de suas pétalas-poder.

Não conseguiu crer. Tinha nas mãos a pétala. Pura. Macia como uma pétala. Vívida em sua palma. Temeu amassá-la.

Acariciou-a. Levantou-se e seguiu deixando o inebriante cenário pra trás. Mas não sem fotografá-lo uma última vez, com pupilas que pareciam mentirosas. Voltou à trilha. Guardou o tesouro recém-apanhado no estojo cor-de-marfim-sujo. Cuidadosamente fechou o encaixe de latão, trabalhado com diamante e grafite. Reluzia belo. Todo feito de palha, com espirros de sal e cacos de vidro combinados num sistemático mosaico, que em toda sua extensão promovia certo torpor pelas figuras que formava. Flores, bananas, relógios, baralhos, bocas entrelaçadas, pernas, abraços, fogo, espuma de um mar cristalino e lixo em montanhas de um paraíso-oásis. Tudo minuciosamente pequenino. Detalhes que encantavam pelo esforço empregado em sua construção.

Guardado o estojo na bolsa de tricô vermelho, Flor se sentou junto a um rio. Ele corria manso. Enternecia. Ela lhe arrancou um pedaço e molhou o rosto. Sentiu vontade de nadar por ele. Mas lembrou que não sabia nadar. Nunca aprendera. Foi pra água mesmo assim. Não iria se afogar. Não no rio. Naquele momento já estava se afogando na própria felicidade. A água tocava seu corpo com tensão corrente. Agradavelmente como em leves abraços.

Aproveitou o momento.

Saiu do rio molhada por seus afagos. Vestiu-se sem enxugar-se. Deitou-se no mato, junto a algumas flores. Delas sentiu o perfume que impregnava. As roupas secaram. Era como se sentisse cada gota evaporar. Lentamente. O aroma floral ainda a perturbava.

Adormeceu.

Sem noção de tempo, acordou. O sol se foi e junto com ele a água da roupa. Agora avistava a lua. Em um cordial sorriso. Tudo estava escuro. O que se podia enxergar era apenas aquilo que o luar deixava. Sentiu que tinha que partir. Apanhou a bolsa e se pôs a andar. O rio a acompanhou. Arrepios. Sentiu frio. A coruja voou sobre ela e conseguiu assustar. Lembrou de São Bernardo. De uma árvore a olhava. Profundamente. Como se perguntasse...

Voltou a andar, pois havia parado para contemplar a ave da noite. Bela e sombria. Poderia andar a noite inteira. Estava disposta. O silêncio era reflexivo. Fazia sentir. Sentia sua respiração. O cheiro do mato. O coração. O que estou fazendo aqui? Perguntou-se. Parou de pensar. Não teria medo. E realmente não estava com medo. Tinha seus motivos. Faltava pouco. Não poderia mais agüentar. Tinha de ser forte para ir até o fim.

Chegou a estrada. Sabia que não passaria nenhum carro-carona. Viu uma luz ao longe. Como queria que fosse a luz no fim do seu túnel. Depois de conseguir chegar até a flor e arrancar um de seus lábios, nada mais importaria. Era uma moto. Branca. O moço a viu e parou. Talvez atônito pela hora, indagou-a sobre isso. Flor não queria responder a sua pergunta. Nem a todas as outras. Naquele momento falar era desnecessário. Finalmente, ele tirou o capacete.

Medo. Quantos olhos viu ali? Eram dois, confirmou. Mas, multiplicadores, de um castanho vulcânico. Perceptíveis sob a luz negra. Era ele, mesmo sem saber. Era. Os fatos sucederam como tinham lhe informado. Encontrou. Como estava escrito. O destino não existia. Pensou.

Retirou o estojo. E dele a pétala com formato de gota. Ele a olhou pasmado. Tirou da jaqueta de couro sintético, o mesmo estojo e a mesma gota.

Juntas, nas mãos, unidas ali sob a lua, formavam a concepção que conheciam desde criança como coração. E ele era azul. Ainda mais azul pelo luar, que travesso transformava a cena em algo onírico. Ambos sabiam que a busca findara. Haviam encontrado. Haviam se encontrado. Dois olhares, um sentimento. Ele desceu da moto e a abraçou. Flor deixou-se abraçar. Ambos detinham certezas, iguais e diferentes.

Subiram e ele ligou o veículo. Seguiram estrada à frente. Alguns ruídos. A moto estancou. Quase sem palavras desde o primeiro olhar, entenderam. Era incrível como a compreensão não precisava de linguagens verbais. Universalidades. Como quando falava com as samambaias da avó e elas respondiam manipuladas pelas brisas-vontades.

A gasolina havia acabado. Intencionalmente ou não. Abandonaram o veículo. Mãos dadas. Segurança. Ele parou. Ela também. Olhares fixamente conectados. O beijo aconteceu na entrega. Era profundo e suave. Em abraços apertados. Lembrou do rio. Libertador. Se amavam, sabiam.

Aqueles beijos esgotaram suas poucas forças. Flor o puxou para fora da estrada. Entraram mato adentro. Ela recostou-se numa árvore. Ele também. Deitou no ombro dele. E adormeceu. Por instantes-horas. Ele sabia o que tinha que fazer. A mata selaria as bodas. Fizeram das árvores lar por três dias. Flor estava cada vez mais fraca. Apesar de ter extrema e compulsiva aversão a idéia, ele tinha a obrigação. Chegara a hora. A doença consumia Flor. E ela queria acabar com aquele sofrimento. Ele deveria fazer o que tinha de ser feito. Foi até a árvore que lhe indicaram. Cavou. Lá estava o punhal. Tudo passou por seus olhos, à medida que ia se aproximando dela. Mais do que a si, amava Flor. Virou o rosto, e plantou o objeto cortante no peito da pequena. Rasgou o bastante para retirar o coração azul. Trêmulo. Não podia mais. Sentia tanta dor e quase morreu ao experimentar o último suspiro da Flor que não mais o acompanharia. Um murmúrio inocente, tudo acabara. Ela ainda viu ali nos olhos dele o rio que corria. Um grito terrível. O bem para o mal. A crueldade libertadora. Como se arrependera. Mas era o que tinha de ser feito. Flor podia vê-lo. Melancólico. Coração na mão. Iria enterrar como previsto. No centro da Terra. E de lá iria nascer a flor. Azul. Todavia, para isso ele teria que regar o solo, com seu próprio sangue. Cortou os pulsos e regou o solo. Pintou o chão de terra com o líquido vermelho, esparramou. Sumiram as forças. No fim, deitou junto à arte que praticara-fizera e adormeceu. Para sempre... Pedra viraria.

Encontraram-se para a eternidade. Para eles ela passara a ser nada. Somente conceito dos Alinhar ao centro mortais, não-possuidores de si. E eles já não precisavam de conceitos.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Era chegada a hora...


Furtivamente entrou. Já não sabia do que estava fugindo. Se do homem que voltara a encontrar ou da chuva que assolava suas flores. Encharcada, foi a cozinha. Pegou um copo e a garrafa de vodka que aprendera a beber. Estava escondida dentro do forno, já que esse, a muito tempo não esquentava seus deliciosos bolos de banana. Talvez achasse que a bebida pudesse afugentar certos pensamentos... Enganou-se.

Subiu as escadas com passos mortos, sem vontade. Sabia o que ia encontrar lá em cima. O mesmo quarto, os mesmos móveis. Tudo igual. Precisava compulsivamente mudar. Tudo. Transformar. Foi até o mesmo armário dos últimos cinco anos e tirou a caixinha de passado. Ali dentro, seus pesares. Revirou-a. Podia dizer que era alergia, mas a verdade foi que seus olhos não agüentaram aquela nostalgia toda. Era um semi-baú de Pandora. Eram caquinhos de sua jornada.

Migrou para o espelho. Já não via aquilo que tanto lhe agradou a uma década. O tempo não fora gentil com ela. Concluiu. Ainda molhados, os olhos tinham uma morada carcomida, linhas aprofundadas saiam das suas extremidades. Cabisbaixos, sem tanto vigor, combinavam plenamente com as curvas também já fundas que saiam da boca rumo aos cantinhos do nariz.

Ela tocou aquele rosto todo que parecia temer, de uma sensibilidade excessiva. As faces já não se enrubesciam como antes. Antes. Como poderia prever? Como quando ia a praia. Saudável, biquíni minúsculo, jovem. Jovem. Entre ela e a areia somente a toalha vermelha. Fritava horas naquele sol a se bronzear. Sempre estava com uma cor invejável, dourada. Não imaginava que isso poderia consumir em médio prazo, a mesma pele, que era a máxima de seu exibicionismo.

Contudo, lhe restaram os lábios, ainda quase intactos sob o efeito do tempo. Lábios que lhe faziam relembrar seu frenesi de musa inglória. Quando os pobres mortais, homens comuns, sonhavam em suplicar-lhe um beijo, por mais breve que fosse. O tocar daqueles lábios era o desejo profundo de cada homem daquela pequena cidade. Apenas um, porém, os teve, conduzidos em beijos de fogo, paixonite aguçada. Extrema e recíproca. Mas isso não importava mais. Agora o passado se fazia apenas em fumaça mental.

O sentimento ainda lhe incomodava. Mudar. Abandonar tudo. Se jogar no irreal, no perdível, no incerto. Era confiável? Não tinha mais idade para aventuras. O que os outros pensariam? O que seu marido faria? O que suas crianças sentiriam? Cansou de pensar nos outros. Abdicar-se de si já era tarefa de anos. Decidiu.

Iria caminhar por outros mares. Ele dissera e reforçara. Iria sublimar-se, anarquizar. Faria tudo o que nunca fez. Amaria. Se perderia sem saber o porquê. Armou a mala, apenas com o básico. Não, não seria suficiente. Rabiscou algumas explicações no verso de um contrato velho. Vestiu-se de felicidade e desceu. No espelho algo tinha mudado.

Verificou naquele instante que a felicidade não se alcança. Ela é a própria busca. De pedras, flores, frustrações, alcances. Estrada. Traçada a cada levantar, na concretização dos pequenos sonhos. Só que acabava esquecendo isso, esperando algo maior, que talvez nunca viesse.

No fim– pensou – nada era, nada tinha, além de lembranças que a consumiam. Interna e externamente. Na sala correu pro telefone. Na linha, uma voz fria, automática, lhe informava que o número discado já não mais existia.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O pai da Flor, que arranhava de espinhos


Começou a se questionar. Qual seria o papel dele? Pensou. Complexificar as posturas éticas da infância na construção de uma formação solidificada no amor? Mais que isso. Flor acreditava no ser que mostrara a ela todas as possibilidades positivas que a palavra caráter podia oferecer. Personificação da honestidade. Até demais, acreditava. Exemplo, espelho, lugar. Batia na porta e com medo_receio de entrar, pensava a cada vez, como tudo passava tão rápido. Nos papiros inconscientes dos vexames escolares, era nele que ela pensava. Apoio, base, colo pra chorar. Carões de sobra. Tinha. Carrancudão, e ela lerda, mal percebia as covinhas do rosto sendo aviltadas pelas pás do Senhor Tempo. Era homem_trabalho. Demasiado, condição. A pele chega era escurecida_avermelhada pelo sol em excesso. Falta de instrução sobre o fator 15, no mínimo.

Era só aquele olhar bruto terno de reprovação ou expressão de carinho que o tornava mais real. Cargueiro. Das contas, do lar, da gente dela. Se sufocava pra dar ar. Plantava, não somente, e continuava a regar. As mãos calejadas, o rosto cansado. Não era mais como antes. O trabalho parecia lhe exigir demais. Como nos porres, em que já exausto daquela vida mesma pesar, vomitava no pé da cama. Talvez quisesse externar os males do mundo. Não ganhava na loteria. Nunca, apesar de sempre tentar. Só restava o serviço. E descansar de um com outro mais maneiro. Sem qualquer retribuição. Cada gesto soava forte. Equilíbrio.

Era permanente, acompanhamento, busca. O cuidar era a constante vigilância, mesmo sob os pesares do seu mal humor, perdoando os defeitos, as falhas diárias, os não-entendidos. Era o único homem que fazia do sofrer o maior pesar da humanidade, queimando no peito dele silencioso. Que encarava a água nos olhos dela, procurando resolver por atos ágeis os motivos que levaram às lágrimas. Era a preocupação que a chateava e escondia as verdades de um futurinho que ainda viria.

Por tudo isso, o amor - não exprimido por beijos ou abraços rotineiros não dados - só conseguia escorrer de manhã, no rápido “a bença pai”. Não conseguia demonstrações maiores. E chorava por isso.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

E por vaivéns alucinantes


Desceu do carro. Era avistada de longe. Podia. Possuída pelo escarlate, parecia emanar ferormônio. Era natural. Achava aquele ambiente tão frio. Mas era para isso que estava ali. Algo podia esquentar. Ela e o lugar. Ouviu os passos rápidos, como só ele podia dar. O encontro estava forjado. Era só esperar. Montada no scarpin preto, salto fino, 12 cm, esperou. Já batia um vento gélido. O suficiente para dar contornos diferentes aos bicos dos seios. Não gostava de nada que lhe prendesse. Fossem deveres, valores, sountiens. Existiam exceções, obviamente. Mãos fortes em seus cabelos com apertos firmes, era uma delas. Excitava-se só com a idéia de vê-lo, quiçá com as demais variáveis.

Os passos apressaram-se e trouxeram um olhar assim desconfiado que esbarrou nas curvas dos quadris dela. Que sentiu os olhos queimando suas costas inteiras e virou-se. Caminhou até ele, e sem dizer nada, vendou seus olhos com o lenço, cetim de oncinha importado, que tirou da bolsa turquesa. Deixando-se levar, caminharam alguns momentos. Ele percebeu que entraram no carro. Ela tirou-lhe a venda e a camisa. Subiu nele.

A língua percorria caminhos, que ele não sabia o porquê, eram tão quentes. Escalou o pescoço, o peito, em movimentos fulgurantes, geométricos. Parava. Já acometido daquele processo masculino natural, segurou-a contra si, com a mesma rigidez de seu membro. E ela continuou até encontrá-lo. Apoderou-se como criança faminta, que brinca em vaivéns alucinantes.

Entorpecido, rasgou-lhe o vestido. Agora ela não pertencia mais a si própria. Era somente das mãos dele. E as mãos, senhoras de tudo, tomaram o poder. Dos bicos, da cintura, das coxas, escorrendo, correndo, puxando. Até entrar. Fez do corpo dela a morada do dedo, que indeciso, entrava e saia, arrancando-lhe os famosos lânguidos gemidos.

As bocas brigavam, machucando os lábios de tanto desejo. Lambuzavam-se na saliva do outro. Era uma batucada ritmada por suspiros secos, sussurros espessos, batidas de coração em desespero. Não conseguiam achar o que pareciam ter perdido no corpo do outro. O banco já reclinado do carro vertia-se escandalosamente naquela aflição. Até que ele, em descontrole, se pôs sobre ela. Plantou-se nela. E dançaram... Ela ao som de um maracatu mental, num rebolado regrado, comprimindo-se por paradas e acochos, de um lado a outro, de trás pra frente. Ele, num xaxado sem-vergonha. Conduzia, se deixava levar, arranhado pelas unhas encravadas nas suas costas, lhe arrancando terríveis dores de prazer. Sentia. Forte, suor, vibrações, beijos cada vez mais profundos. Queriam alcançar o céu, o interno, a alma. E simultaneamente lá iam os seios delas suplicar mordidas afuniladoras, lambidas redondas, chupadas macias.

E foi a boca passear por suas montanhas, até chegar no contorno central. E abrir novos lábios e explorar com retidão, sem aberturas para erros, com aberturas pras mãos. Já enlouquecida, dominou-se pela lamentação extrema e orgásmica. Percebendo, ele, foi lá e fez. E por acaso ou pelo ocaso misturaram-se abstrações, o sólido se desfez em líquidos. Permaneceram tântricos. Desceram do carro. O luar brega da noite cobriu os corpos nus dos dois. Queriam correr de novo. Ele engatou a marcha, acelerou novamente o carro, e pela estrada deserta, se amaram de novo a 75km por hora. Podia ser mais. Podiam morrer ali. Mas não, ninguém morre de prazer...

domingo, 3 de outubro de 2010

Ode ao estranhamento


Porque é igual e é diferente. O conflito está ai. Estranhar é normal. Já que a normalidade é um estado de espírito. Conviver é descobrir que nada é semelhante e que tudo se parece. Tolerar é quase impossível. Encarar o outro como a extensão de si próprio é muito bonito. Mas a realidade mostra que nos cenários cotidianos mesmo os pares não se aceitam.

Que as energias banhem a força de vontade nas tentativas diárias de aceitar o diferente. As situações, as vontades, o outro. Que os arroubos solidários não se restrinjam aos fins de ano, que a esmola assistencialista migre para ações efetivas de melhorias da coletividade e que os amores às coisas se transgridam e transportem ao próximo. Esses podia ser os gritos da pacificidade modificadora.

Achava tudo aquilo, certo. Queria ir além. Sabia que não cumpria, ninguém cumpria, o que estava dizendo ao PC. Tentava ao menos. Começou de novo.

Procurar se enxergar no outro em cada ação diária é uma tentativa mesmo que diminuta da reinvenção de um outro mundo possível. Interno, externo...

Realmente, aquele não era seu dia. Desligou a máquina que lhe auxiliava a exprimir pensamentos. A rua podia ter aspirações, inspirações melhores. Gente. Nem sequer conhecia os vizinhos. Morava ali desde que nascera. Era culpa da sociedade contemporânea individualista! É, realmente era fácil isentar-se. “Tentar ver diferente...”. Desceu a rua da menina que mais detestava desde a quinta série. Se perguntou o porquê. Não lembrava. Classificou mentalmente o homem com o saco, sujo como ele, de mendigo. Atravessou a rua com medo. O dono da bodega, homem gordo que sempre soltava piadas inúteis, descabidas, cochilava na rede, em posição de quem estava acordado. A fofoqueira da rua lhe passou um olhar inquisidor, debulhando seus pensamentos feito espiga de milho verde. Sentada, gorda, dia após dia no banco de madeira de jambo, fitava cada transeunte, já seu velho conhecido de olhar, com ares curiosos de despir as mentes distraídas.

Todos aqueles estereótipos lhe serviam agora para entender as divergências de compreensão. Conflitos. Assim como não gostava de homens brancos, baixos ou de olhos azuis, havia gente de outros gostos. Mas partir de não gostar para intolerâncias, racismos, xenofobias era insanidade. Isso de tentar suprimir o outro com ganas de superioridade é forma passível de apreensão. Ainda mais vinda do ser humano, fraco, insensato, racional.

Foi como quando perguntou ao skinhead no bar, naquela quarta-feira. O suspensório vermelho, era nervosamente segurado. Insegurança. São superiores para si, como reforço de apreensões subjetivas mais intensas, internas. Pena. A quinta cerveja entregou. Excluía para ser incluído. No grupinho, confessou. É o reflexo do meio social maior. Pensou como aquilo poderia ter gerado uma Guerra Mundial. Qual seria a saída agora? Apontar formas de convivência pacífica. Nas casas, empresas, ruas, senados e até nas igrejas. É o jeito.