quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Nojo



O negro da roupa sugava aquilo que ele não queria. Algo como auto-proteção. O cabelo desmanchava-se na testa marcada por rugas rasgadas, precoces, insanas. Furou o ar com a baforada típica do marasmo que se seguiu. Engasgou, o vício era prazeroso e confortante. Ainda era dia e aquilo assustava. Aquilo. Tão forte e fugaz quanto uma luta de verdades. Entrava pelas casas, batia pelos rostos, se destrinchava em cores. Os olhos ardiam só de pensar.


Avançou pelo escritório, pensou em voltar, conteve-se. Teria de ir e encarar, mesmo que pelo caminho de tempo, aquilo. Ajeitou e tirou da camisa esfulepada a armação que lhe amenizava o sofrimento. Quadrada e preta, bem preta, foi sucesso décadas atrás. Sucesso agora também por diminuir a latência do horror provocado pela coisa estúpida e clareadora. Traçou a porta, driblou o corredor e pela janela ela já dava sinais mórbidos de vida. Nauseou-se. Era tocar-lhe mesmo que levemente, para arrepiar o gogó de macho estridentado. Ia aumentando à medida que se aproximava de fora. Era asquerosa. Lembrava de quando criança, como o escuro do quarto era acolhedor. Já vestido dos óculos de sol, levou a mão ao rosto naquele embate com o monstro que lhe afetava tão sonoramente os nervos e a pele.


Agora ela cobria-lhe, e não havia mais nada a fazer. Abraçava-lhe suave e tristemente. Recoberto por ela, ele apressou-se em passos bêbados de um sangue sem álcool, sem cor. A sensação era monótona e cruel. Não comprometia apenas as córneas astigmatas. O formigamento passava para o rosto. Sentiu nojo da luz. Aquele brilho era desconcertante, peçonhento. Naquele dia, especialmente, a percepção era mais firme. Detestava aqueles feixes que acertavam-no. Tiros de caos perfurando a camisa, as vistas, seu orgulho.


Sempre ouvira falar que as pessoas enojavam-se das coisas escuras, feias, omissas. Quase um racismo naturalizado. Com ele era diferente. Bebê, estranho que foi, adormecia com a luz da lâmpada a encará-lo. Era como um desafio, quem poderia adormecer primeiro, ele ou a luz. Ela sempre ganhava. Depois descobriu que a mãe era a culpada por sua derrota diária.


Pela calçada, o corpo estrebuchava internamente, ele suava. Não pelo calor, mas ela claridade. Tão brilhosa, bela, destruidora. Apertava-lhe, roubava-lhe as poucas energias. Não tinha para onde ir naquela hora. Vag[eu]ou. Os pés em pânico, já que descobertos em chinelas de couro traidoras, custavam a levá-lo. Asco sentiu mesmo foi daquela grande ferida repugnante que abocanhava o céu e seus couros. O sol. Emitindo ondas malévolas, consumidoras. A cefaléia parecia crônica e lhe deu mais ojeriza. Sentiu na boca o gosto da luz. Terrível, uma mistura de suor e confirmações de sofrimento.


Tropeçou nos pensamentos de aversão e caiu numa poça de lama. Escura e fria, ela o aqueceu. Dotou o rapaz magro de uma calmaria marítima, uterina. Não quis se levantar. Espalhou-se. Recobriu-se do barro. Era sua armadura contra a luz. A poça tinha um odor que incomodava. Mas não a ele. Parecia dançar por dentro. Já todo vestido de lama, sentiu algo afagar-lhe o cóquis. Ia subindo espinha acima numa carícia de arrepio, uma massagem de patinhas, já identificava. Levou os dedos direitos às costas e agarrou o ser. Trouxe-o a frente. Os olhos arregalados do bicho lhe passaram uma ternura medonha. Estrebuchando entre os dedos magros e compridos do rapaz magro e comprido, o réptil parecia querer fechar os olhos diante da luz que incidia nele. Não conseguia. Compartilharam da mesma aversão. Ele e o calango. Ali sujos de lama. A terra ia perdendo a umidade por culpa do claro solar. Desejou tapar a ferida.


A vida escurecia. Talvez, por seus desejos internos. E aquela bola branca embaçada que ele tanto adorava se apresentou acima dos olhos, seguindo-o. Foi pra casa, pelos becos que já conhecia mais sombrios. Feliz. Pôs o calango no antigo aquário do peixe. Agora tinha um amigo. Questões de afinidade.



Um comentário:

Miqueias disse...

sempre ao inverso. sentindo nojo daquilo que não repugna. contrariando a mão. tentando acertar, mesmo na contra-mão. é, às vezes o belo é traiçoeiro, feito lobo em pele de cordeiro. tem luzes que cegam, não é? gostei do texto, parabéns.