sábado, 25 de junho de 2011

As certezas são muito chatas...


Flor tinha espirrado com a poeira das passagens que relia. Fechou o livro, cujas ideias pesavam em suas mãos e mente. Todos na casa dormiam. Era, a cachorrinha malina e, Cidreira, o gatinho de olhos indecisos. Tateou na semi-iluminada pequenez da sala colorida e tropeçou num azulejo. Diabéisso, pensou. Isso é que dá, morar numa casinha velha dessas, tão linda, minha e conflituosa, concluiu pra si própria. Alcançou o interruptor de design arcaico e apertou-o. A tomada tinha uma moldura com ondulações e retorcimentos, como quem delira. Estilo eclético, misturada de elementos barrocos, rococós, e sujeira nas escavações. Desistiu de entender aquela origem da luz e caminhou rumo ao lugar que tropeçara.


Baixou as vistas e foi lá examinar a causa de seu dedão estar latejando tanto. O retângulo parecia solto. Podia recolocá-lo no lugar, porém para isso, era necessário arrancá-lo. Tentou puxá-lo, mas a única coisa que conseguiu foi quebrar a unha que demorou três semanas para crescer e impressionar a amiga. Pelo menos já a havia mostrado à amiga. Tacou-se no quarto e só retornou quando na mão direita figurava um palito novinho que usava para limpar restos de esmaltes e empurrar cutículas. Enfiou o pedaço cilíndrico e fino de madeira na brecha entre um azulejo e outro. Após forçar, levantou o azulejo meio azul, meio amarelo, meio imundinho.


Tal foi a surpresa nos olhos daquela menina, quando meio que brilhou dentro daquele buraco que fizera no canto esquerdo de sua sala, uma chave. Estava coberta duma areia porosa que um dia fora cimento, aliança que unira o chão quente ao azulejo frio. Tirou o metalzinho de textura craquelé do lugar, deu-lhe uma limpada, múltiplas assopradas, esfregou na barra do vestido de crepe, até que parecia decente.


Arre égua, como pode isso?, pronunciou baixinho. Sentou no sofá velho, recoberto de mantas e, ficou olhando a chavinha. Era bonita, bonitinha. Comprida, tinha numa das pontas, vários círculos e buraquinhos, que cerceavam algo semelhante a um coração. Quase parecia uma chave de fenda apaixonada. As bolinhas seguiam e se transformava mais acima em uma haste de três curvinhas. Era como se um anãozinho de trinta centímetros tivesse apertado, com suas minúsculas mãozinhas de força estupenda, e deixado as marcas dos seus dedos por ali, pra todo o sempre. Só de um lado, porque do outro, não eram curvas que adornavam a pequena chave.


Esse outro lado era liso, e a maciez do metal era molestada somente por um pequeno relevo amontanhado. Quando se acabava a haste de três curvas e uma montanhinha, logo assimetricamente, uma configuração disforme tinha perfurações também circulares. Três furos menores, com raios que diminuíam em proporção aritmética. O buraco maior parecia uma briga de círculos famintos e devoradores um do outro. Mas logo nessa fenda nascia uma argolinha, cuja irmã menor se encontrava do lado de fora, na beirada da chave. E no topo da bichinha, um cristal arranhadíssimo, encravado tortamente num meio de círculo.


Depois de ver e enxergar aquele bocadinho de detalhes dementes, Flor achou a chave feia. Quase sentiu vontade de sepulcrá-la novamente debaixo daquele azulejo. Mas curiosidade é coceira que só passa com pomada de soluções. E daí a moça se inquietou. Foi regar suas plantinhas, com ganas de quem acha que programas chatos e caridosos enriquecem a alma e amaciam os tormentos. Quem dera. Matutou e nada de ver lógica naquilo tudo.


Estava ali, às quatro e quinze da manhã, com uma chave na mão, um azulejo e vários parafusos fora do lugar. Tinha tantas hipóteses tão absurdas na cabeça, que se cansou. A velhinha, que morava ali antes dela, podia ter sido bela nos seus anos de moça, e daí, teria tido um dote, guardado em um baú, cuja chave era aquela. O amado da velhinha podia ter fugido com o dote, depois de ter arrombado o baú, e a pobre da Dona Toinha - a velhinha -, tinha enterrado a chave ali, junto com seu amor traído. Claro que não!, refletiu. Ave Maria, tu acha!?, claro que não, claro que não...


E se, e se... ah! E se quando a casa estava sendo construída, um dos pedreiros simplesmente colocou a chave ali. A chave poderia ser do diário da filha dele, que o moço acabara de ler e descobrir que a menina perdera a donzelice. De raiva, queimara o diário e jogara a chave debaixo de seu trabalho. Hum, acho que não!, ultimou. E se for uma macumba? E se for de esquecimento? e se for de uma porta?.. Flor achou melhor desistir. Provavelmente nunca saberia sobre a origem da chavinha meio feia, meio bonita.


Se consolou com o fato da chave ser mais bela assim, toda cheia de mistérios. No fundo as coisas são só coisas. O que importa é a história por trás delas. E como Flor não sabia a verdade, podia botar na chave a história que quisesse. Era mais interessante. Tinha uma virgula de frustração, mas quando controlou a coceira da curiosidade, tirou do porta-bijuterias que tinha ganhado do ex-namorado, um cordão e meteu-o pelo buraquinho da chave. Ganhou um novo adorno. Amuletou a chave, fez pingente guardador que não tirou mais do pescoço. Desde então, esqueceu da história e só recorda de vez em quando. Toda vez que alguém pergunta de onde é aquela chave estranha, ou quando seu peito se sente pesado.


O objeto adquiriu significado, ganhou valor. Ficou parte dela agora. Depois venderia num brechó qualquer. Enquanto isso, aquele pingente feio integraria sua monotonia. Descobriu que mondrongos podem ser encantadores e necessários.


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