sábado, 25 de fevereiro de 2012

[Amor em tempo de redes sociais] Capítulo 3 - O encontro




Eram oito e quinze da noite e o ônibus parava mais uma vez frente à máquina piscante de três cores. Como amava o vermelho. Todavia, naquele instante, era frustrante vê-lo dar ordem aos carros. Motoristas suando a deixavam nervosa naquele aperto de olhar a rua impaciente. A maquiagem dali a pouco escorreria-lhe face afora e nada poderia ser feito. Lembrou que faltava apenas um quarteirão até que o ônibus alcançasse a parada em que ela iria descer. Animou-se. Lembrou junto, da cara de tacho charmosa e vibrante do pierrot que a esperava. Desceu.

- Desculpa o atraso. Sabe como é trânsito nessa cidade. Você chegou agora?
- Não se preocupe, minha flor. Na verdade, eu tô aqui desde as quatro da tarde. Vim mais cedo pra assistir ao filme do Fellini, ali no Cineclube.
- Humm... E qual era?
- 8 ½. Já viu?
- Não, esse só baixei. Não assisti ainda. Gosto de E La Nave Va e d’Os Palhaços.
- Dormi no E La Nave Va, vou nem mentir. Mas chorei n’Os Palhaços. Muito tocante.
- Ave! Gosto dos dois. Mas mais do que do Fellini, gosto do Almodóvar.
- Sim. As cores de Almodovar me atraem, vermelho... Kika, Volver, Tudo sobre minha mãe, e agora, esse último...
- A pele que habito. Intrigante.
- Demais. Crise existencial total!
- Crise existencial? Tu acha?
- Minha subjetividade lascou-se com ele. Todo aquele ódio, os erros, a loucura... Mexem com a gente.
- Eu sei. Mas típico do Môdovazim.
- Môdovazim?
- É. Gosto muito dele. Também gosto do vermelho. Aí, pronto.
- E a sua calcinha é vermelha?
- Hã?
- A sua calcinha é vermelha?
- Olha garoto, num é porque eu topei sair com você que você vai me levar para a cama não, viu? E que vulgar, falar essas coisas. Oxi!
- Hã? Eu só perguntei se sua calcinha é vermelha.
- Só? Acha pouco?
- Xiiiii... Você é uma libertária muito conservadora, minha filha. Eu só perguntei se sua calcinha era vermelha. Não vejo nada demais nisso. A não ser que eu tenha acertado, o que, por conseguinte, lhe deixou assim tão ou mais vermelha que a dita calcinha da questão.

E uma raiva frenética estuprou-lhe os poros e quis sair pela boca, num grito escrachado. Mas não. Ela conteve-se, porque ele realmente tinha razão. Na cor, no constrangimento. Era um aborrecimento atraente, com aqueles olhos apertados, fitando-a maliciosos. Contendo-se, sentou no banco próximo de onde passavam.

- Tudo bem, tudo bem. Eu não vou fazer desse encontro um momento de auto-flagelo. Não vou brigar com você.
- Vixi, como tu estica a baladeira, mulher. A gente tá só conversando.

Aquilo só podia ser brincadeira, pensou. Enfrentara quarenta minutos num trânsito lesmático, já tendo aceitado o pedido absurdo de vir ver esse rapaz tresloucado que quase vira morrer atropelado na semana anterior, pra ele vir falar aquilo? Respirou fundo.

- Você sabe o que está dizendo, gato. E faz com algum propósito. Enfim, o que a gente vai fazer? Só ficar passeando por aqui mesmo? Comer alguma coisa? Ver um filme, teatro, exposição?
- O que você quer?
- Eu tô com fome.
- Vamos.

Lancharam e a conversa amenizou-se, pelo menos enquanto a batata frita extinguia-se do saquinho. Falaram de cinema, festas, movimentos artísticos e tudo mais que os linkava. Vez ou outra, ela tirava o celular da bolsa, com o intuito de verificar novas atualizações no feed de notícias ou ver se não tinha novas mensagens. Os olhos dele a criminalizavam por isso.

- Será que tu sobreviveria sem ele?
- Sem ele quem?
- Sem o Facebook.
- Ah, claro! É questão de hábito. Se passo algum tempo sem, passo bem. Mas quando volto, tenho necessidade.
- Humm... Novas drogas! E de quais tu gosta?
- Quais o quê?
- Quais drogas, gatinha?
- Não curto.
- Humm... Achei que curtia. Não essas, né? Só curte e vibra com as coisas, virtualmente?
- Claro que não. Até acho isso de só curtir positivo demais. Deveriamos descurtir e tal.
- É verdade. Só o comentário serve pra isso. Paia. Eu acho que essa rede paz e amor, azulzinha e tal, com conformismos virtuais bem encaixotadinhos num design minimalista tá assumindo um papel muito forte na sua vida.
- Ah, você acha?
- Sim. Vi suas últimas atualizações, e o intervalo entre uma e outra é bem curto. Você quase não tem tempo pra viver o que compartilha.
- Muito bom ter especialistas que avaliam meu comportamento virtual, com tanta perspicácia. Assim não preciso me preocupar.
- Às ordens! E outra coisa...

A outra metade da frase misturou-se entre as línguas ainda com gosto de coca-cola geladíssima. Ele a irritava de tal forma que Flor não se conteve em avançar naquele beijo, de pura necessidade. Sôfregos, recompuseram-se nos seus lugares, após três minutos-eternidade, e no tempo-depois que se colocou após aquela delícia de beijo.

- Tá, adorei seu protagonismo feminino.
- É? E se tu me beijasse em vez de ficar de lenga lenga ai, seria protagonismo masculino?
- Tudo bem, me pegou. Tava com medo de que você não quisesse.

Ela o olhou profundo e lento, levantou-se, segurou sua mão.

- Vamos?
- Você quer ir pra onde agora?

Ela apenas sorriu. Naquele minuto, a frase do livro de Vargas Llosa que lera na semana anterior, lhe veio a mente: “o segredo da felicidade, ou pelo menos da tranquilidade, é saber separar o sexo do amor. E se possível, eliminar o amor romântico da sua vida, que é o que faz sofrer”. E porque pensar naquilo agora? Quem estava falando de amor? O intuito era a outra coisa. Eles foram.

E nem sempre...
A verdade é apenas um grito estúpido da imaginação. Que pode se desfazer feliz num sopro de vento. Ela ali, embaixo, pensou. Ele estava dentro dela, físico, formal, sentimento. Por um instante, a moça, esmagada prazerosamente pelo peso do grande rapaz, desejou sussurrar em seu ouvido as palavras já tão ditas pelas camas do mundo: eu te amo. E como vindo de um fundo bem lá embaixo de sua alma, voltou sincero como veio, e ela continuou a aproveitar o momento. Não chegava aquilo a ser um momento, posto que a duração era tamanha e inesquecível, pungente. Aproveitou.

O telefone tocou. Ela foi atender. Ele pediu que não.

- Alô...

- Preciso ir.

E foi.

- Quando vamos nos ver de novo?
- Agora tenho seu número.

Vestiram-se e ele a deixou na esquina que ela pediu. Despediram-se sem beijo. Ela teve medo.

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