sábado, 18 de setembro de 2010

Amenizar precisões

“Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,

Carcará
Vai fazer sua caçada

Carcará
come inté cobra queimada

Mas quando chega o tempo da invernada

No sertão não tem mais roça queimada

Carcará mesmo assim num passa fome...”


Flor gostava da música de Bethânia. Mesmo sendo esse o apelido_chacota de infância do irmão. Ele era homem. Anos difíceis. Era a personificação da opressão, a bichinha. O sotaque herdado do convivio com os pais entregava. Quando aprendia a ler, deixou Tauá. 8 anos de idade. Muito osso e beiço. E não mais voltou. Suas lembranças eram diferentes do que pintavam na TV. A pele encardida, a baixa estatura. “Tamburete de forró". Procurava todos os shows de rock que podia.

No fundo,ela sabia o porquê do irmão não tirar o boné. Mas o trauma era maior que a cabeça chata. Enrrustira-se de uma alto-proteção inexplicável. Não tinha nada de agrestina, além da personalidade. Gostava de São Paulo. Os paulistas não eram todos assim... Tentava ignorar.

Mais que Severina, era Maria. Comum, embora mais que isso.
Nunca entendeu. Os apelidos, as diferenças, as vergonhas. Gabava-se por ter Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna e o Cinema Novo. Humilhavam-na por ter Calcinha Preta, Tiririca, João Inacio Júnior, Mussão e as oligarquias. Por ai, foi pesquisar. Era um saco não ter argumentos suficientes para dizer que existia alguma coisa tão boa que superasse coisas tão ruins como as gentis famílias. Encarava de frente o fato das terras de laços do esquecimento terem seus coronéis pós-modernos. Olhinhos azuis, ex-presidentes, pais e filhas de colchões inchados. Construções. Como tanto ouvia, calava-se. Até o dia em que o colega de sala começou com aquilo. Pelo orkut já era demais. Analisou e entendeu. Usou Paulo Freire. Era mais uma “esfarrapada do mundo” ,“problema crônico social”. Era uma flor de cactus. Pensou em usar seus espinhos. Mas não. Da seca, de necessidades latentes, jorrou a doçura, como a do leite da planta. A flor áspera, forte. Fibras. Não tinha com o que se preocupar. Sabia de toda a balela da invenção do Nordeste.

O preconceito era também auto-justificação de algum medo, ou algo do gênero.
De toda forma, ignorou. Adquirira a identidade lhe passada desde criança. Pertencia a uma região. Ambas banhadas daquelas pelejas diárias. Formadoras. A comu no orkut era só vento de palha. Se perguntou muitas vezes os porquês... Deu uma vasculhada pela net e descobriu. A árvore genealógica do colega xenófobo era quase um xique xique. Plantada na região seca que o gatinho desconsiderava, denegria. Tios, avô, priminhas, todos oriundos de um pequeno interior de Pernambuco. Negar as origens não era educado. Pensou. Um e-mail foi o suficiente para acabar com aquilo. Mais especificamente, um grupo de e-mails.

Depois o grupo de estudo... E por seu colégio alguns muitos entenderam. Foi o suficiente pra sorrir a cada vez que escutava no ônibus a canção guardada no seu tocador. E as cordas da garganta de Bethânia integravam-se as do violão do seu músico pra denúncia: “1950. Mais de dois milhões de nordestinos viviam fora de seus Estados natais. 10% da população do Ceará emigrou. 13% do Piauí; l5% da Bahia; 17% de Alagoas. Carcará. Pega, mata e come!”... Era um pouquinho de consciência. Tranquilizou-se.


Nenhum comentário: