quinta-feira, 30 de junho de 2011

Amor e vida de uma tampa


Era uma vez uma tampinha na rua. Me pisam todo dia, dizia. A pobre velha, era nova, contava. Havia 23 semanas tinha sido destampada, com aquele somzinho – pluftsss. Sentiu-se plena nos dois segundos que se seguiram. Quão intenso e vigorante foi aquele salto, quando o abridor enferrujado daquele bar de esquina, logo a desgrudara, permanentemente, do vidro gélido da mãe garrafa. E ela gritou pluftsss. Sentiu-se triste. Sentiu-se quente. Viu-se no ar. Subiu, para em seguida, descer e fazer-se feliz. Poderia morrer ali. E tal foi o tuco tuco que seu coração faria, se tivesse um, que logo o chão a amparou. Poin-oin-oins sucessivos. Descobriu-se ser de alumínio. E foi num solo de azulejo morno que reluziu naquilo que não sabia ser um espelho. Ou melhor, um pedaço de vidro espelhado refletor da imagem alheia.


Então, Tampa se viu ali, desamparada, sozinha. Até que, no meio segundo seguinte, Tampa foi levantada por gritos graves, gritos de olhos castanhos e puros. Tampa jamais vira olhos tão olhos antes. Era um ser bebedor diferente, pensou. Era um ser bebedor que sabia reconhecê-la , para além de estar cobrindo um líquido. Ou quem sabe, um ser bebedor que a vira ali, sozinha, e quisera cuidar dela.


Foram os vinte minutos mais amantes de sua vida de tampa. O ser bebedor a fazia saltar entre os dedos. Desvendara seu toque. Ele a olhava, a virava, a manipulava tão gentilmente, que talvez o coração de Tampa, se ela tivesse um, saltasse tão intensamente quanto seu afeto pelo ser bebedor. Mas como alegria de tampa é feito a pequenez do raio de sua circunferência, o ser bebedor a pôs no bolso, em momento-escuridão que a encheria de lágrimas, se tivesse olhos.


Foi tudo tão intenso e ao mesmo tempo tão breve, reclamou para a vida. Naquele estado, sem ver os olhos tão olhos do ser bebedor, só se nutria da lembrança vaga e forte dos minutos anteriores. Ele andava, e ela ali, meio apertada, podia sentir o calor do corpo do ser amado. No nada de luz, refletiu, refletiu e, quis saltar do bolso, mas não tinha pernas pra dar impulso. Pobre tampa. Tão delicadamente produzida em série. Suas inscrições de conteúdo eram tão pequenas que quase nem se podiam ler. Suas formas era tão perfeitamente simétricas, que agora nem podia se orgulhar de exibi-las, porque estava só, no bolso de quem amava.


No mundo das tampas, elas imaginam que quando se encontra o ser bebedor de olhos tão olhos da vida delas, e há o momento triste em que ela já não mais salta de seus dedos, vai parar num bolso. No mundo das tampas, elas acreditam que é neste momento que devem se mostrar mais amorosas e descer até o fundo do bolso. Mal sabia Tampa, que o segredo estava em subir, subir, como naquele instante em que foi destampada. Seria ai que o ser bebedor lhe veria diferente. Deixaria de ser mera peça da coleção de belas tampas que ele guardava no quarto. O quarto! Para onde o ser bebedor sempre levava tampa a tampa.


Reza a lenda que, numa noite qualquer, o ser bebedor, até destampa uma tampinha frente à coleção inteira.


Só e num escuro de bolso, tão longe e tão perto do coração-amor do ser bebedor, Tampa sentiu-se abraçada, por dedos que não eram os mesmos da tarde que terminara. Eram dedos finos e de extremidades esmaltadas. Eles logo tiraram Tampa da escuridão. E lhe levaram a lata do lixo. Era um mundo bem além do fedorento. Era um mundo variado e colorido, no qual sempre se via amigos pedaços partirem aos montes rumo a algo cujo barulho assustava tampa. Ela sempre restava, presa que tratava de ficar nas brechas do grande balde-casa.


Depois que resolveu se tacar fora do balde-casa, Tampa se via chutada por um pé e outro, pés que não tinham olhos tão olhos, mas que sempre a levavam à aventura do salto e ao lamento do lugar nenhum. Só que Tampa, por esses dias, resolvera. Andava sendo chutada por pés-destino e foi bater na beirada da calçada de uma casa de sorriso na janela.


Suja, amassadinha e com as inscrições de conteúdo ilegíveis – bem mais na parte interna que por fora -, Tampa foi apanhada por dedos-encanto. Eram leves e firmes, seguros, podia sentir, seguros, posto que quando olhou os olhos daquele outro ser bebedor, quase não pode deixar de chorar. Embora, fosse apenas o orvalho da noite que tivesse caído em sua tez metálica, o efeito de emoção cristalizou os olhos ainda mais olhos do ser bebedor, que achou aquela tampinha desgastada a mais bela tampa que já encontrara na calçada do seu bar. Tão linda que a achou, desamassou-lhe as dobras de suas emoções aos pouquinhos, e esguichou tintas de carinho que pintaram uma flor na parte de cima de Tampa.


Ah, o que será isso?, indagou-se. Como pode uma tampa estar tão completa sem uma garrafa por tampar? E lá, ela foi levada, para um painel lindíssimo de tampinhas recicladas, de tampinhas-adorno, como ela jamais pudesse ter imaginado que existisse. E amigas-tampas compartilharam com ela suas experiências de amor e vida de Tampa. Só que era costume, tradição que fosse, sempre o ser bebedor vir e escolher uma ou duas para levar ao paraíso.


Mas aqui, com vocês e as visitas do ser bebedor com olhos mais que olhos, já é o paraíso, concluiu Tampa. Claro que não!, corrigiu a outra tampa. O para sempre é quando você acha sua garrafa e resguarda o conteúdo que ela oferece, revelou a tampa à Tampa. Disse ainda, que quando o ser bebedor vem e leva é para selar-se com uma garrafa tão linda, vivida e de conteúdo decorativo-esplendoroso. E que, de fato, não vai ser mais destampada, pois a união é feita com superbonder. Tampa e garrafa ficam lindos na estante do bar do ser bebedor de olhos mais que olhos. São a pura aparência da concretização do amor em pequenos detalhes.


Mal posso esperar pela minha vez de ser arrebatada, falou a Tampa. Mal fecharia a boca, se tivesse uma, foi retirada do painel, levada à mesa, salpicada de cola maluca e unida eternamente à uma linda garrafa, linda e linda. As mãos do ser bebedor levaram o casal à estante, que suportava outros casais também completos naquela monotonia toda linda. E eles viveram felizes para sempre. ..


Not. Depois de verem a vizinha tampa perder o marido garrafa de uma queda, se quebrando em mil vidrilhos, Tampa e Seu Garrafa foram comprados por um casal de turistas, que os deixou solitários em uma mesinha de uma sala gigante. Vez por outra, caia uma tampa nova no chão, em alguma festa, e Tampa se lembrava do seu pluftsss. Bons tempos, boas coisas, recordava.


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