sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Era chegada a hora...


Furtivamente entrou. Já não sabia do que estava fugindo. Se do homem que voltara a encontrar ou da chuva que assolava suas flores. Encharcada, foi a cozinha. Pegou um copo e a garrafa de vodka que aprendera a beber. Estava escondida dentro do forno, já que esse, a muito tempo não esquentava seus deliciosos bolos de banana. Talvez achasse que a bebida pudesse afugentar certos pensamentos... Enganou-se.

Subiu as escadas com passos mortos, sem vontade. Sabia o que ia encontrar lá em cima. O mesmo quarto, os mesmos móveis. Tudo igual. Precisava compulsivamente mudar. Tudo. Transformar. Foi até o mesmo armário dos últimos cinco anos e tirou a caixinha de passado. Ali dentro, seus pesares. Revirou-a. Podia dizer que era alergia, mas a verdade foi que seus olhos não agüentaram aquela nostalgia toda. Era um semi-baú de Pandora. Eram caquinhos de sua jornada.

Migrou para o espelho. Já não via aquilo que tanto lhe agradou a uma década. O tempo não fora gentil com ela. Concluiu. Ainda molhados, os olhos tinham uma morada carcomida, linhas aprofundadas saiam das suas extremidades. Cabisbaixos, sem tanto vigor, combinavam plenamente com as curvas também já fundas que saiam da boca rumo aos cantinhos do nariz.

Ela tocou aquele rosto todo que parecia temer, de uma sensibilidade excessiva. As faces já não se enrubesciam como antes. Antes. Como poderia prever? Como quando ia a praia. Saudável, biquíni minúsculo, jovem. Jovem. Entre ela e a areia somente a toalha vermelha. Fritava horas naquele sol a se bronzear. Sempre estava com uma cor invejável, dourada. Não imaginava que isso poderia consumir em médio prazo, a mesma pele, que era a máxima de seu exibicionismo.

Contudo, lhe restaram os lábios, ainda quase intactos sob o efeito do tempo. Lábios que lhe faziam relembrar seu frenesi de musa inglória. Quando os pobres mortais, homens comuns, sonhavam em suplicar-lhe um beijo, por mais breve que fosse. O tocar daqueles lábios era o desejo profundo de cada homem daquela pequena cidade. Apenas um, porém, os teve, conduzidos em beijos de fogo, paixonite aguçada. Extrema e recíproca. Mas isso não importava mais. Agora o passado se fazia apenas em fumaça mental.

O sentimento ainda lhe incomodava. Mudar. Abandonar tudo. Se jogar no irreal, no perdível, no incerto. Era confiável? Não tinha mais idade para aventuras. O que os outros pensariam? O que seu marido faria? O que suas crianças sentiriam? Cansou de pensar nos outros. Abdicar-se de si já era tarefa de anos. Decidiu.

Iria caminhar por outros mares. Ele dissera e reforçara. Iria sublimar-se, anarquizar. Faria tudo o que nunca fez. Amaria. Se perderia sem saber o porquê. Armou a mala, apenas com o básico. Não, não seria suficiente. Rabiscou algumas explicações no verso de um contrato velho. Vestiu-se de felicidade e desceu. No espelho algo tinha mudado.

Verificou naquele instante que a felicidade não se alcança. Ela é a própria busca. De pedras, flores, frustrações, alcances. Estrada. Traçada a cada levantar, na concretização dos pequenos sonhos. Só que acabava esquecendo isso, esperando algo maior, que talvez nunca viesse.

No fim– pensou – nada era, nada tinha, além de lembranças que a consumiam. Interna e externamente. Na sala correu pro telefone. Na linha, uma voz fria, automática, lhe informava que o número discado já não mais existia.

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