sábado, 23 de abril de 2011

Flores não mofam. Ou mofam?


A menina Flor resolveu brincar de mulherzinha e ajeitou a tela do PC de frente pra sua cama de colcha lilás. Postou-se a pintar as unhas e fez florzinhas nelas. Esmiuçou-se em besteiras que há tempos não fazia. Detestava esses adornozinhos que as mulheres retêm nas extremidades do corpo. Arrumou e lixou as unhas assistindo P.S. Eu te amo. Era lindo e cheio de ressalvas. E ele não tinha ligado, lembrou.


A mãe fizera um delicioso sanduíche de pão amanteigado com galeto desfiado dentro. Ela sempre fazia essas coisas perfeitinhas e trazia no seu quarto, com o prato e o grande guardanapo deixando tudo mais bonitinho. A mãe nem lembrava que antes de ela ter ido, com o pai e o irmão ver a encenação da Paixão de Cristo, discutiram rapidamente sobre essa hipocrisia toda da religião.


Flor desejou do fundo da alma ter tido vontade de ir ver. Quando a mãe chegara, foi ao quarto e perguntou: - Adivinha quem foi Jesus? E lá fui ela divagar... Passaram-se três segundos e a mãe interrompeu dizendo que era o pai do filho da vizinha, ex-amiga da prima. Flor completou dizendo que ela já tava grávida de novo. A mãe já sabia e arrematou que o casal ia se casar. O Jesus daquele bairro de periferia ia casar com a mãe de seu segundo filho. 17 anos e o segundo filho. Deixou de pensar em todas aquelas coisas reais que apeteciam o seu ao redor e vagueou nas ideias do filmeco.


E porque se libertara assistindo um draminha norte-americano de romance. O achara interessante. Não só porque fazia referência a idiotice estadosunidense em algumas falas. Não só pelas cenas engraçadinhas de procura do homem ideal, onde a personagem elencava as prioridades clichês de que necessitava. Mas porque a fez refletir um bocadinho.


Certo, também perdera um amor forte e tal. 9 a 2, sem comparação, ela sabia. Até passara pela mente de Flor que se o dito cujo tivesse morrido teria sido melhor. Todavia, no fundo, foi melhor como foi. Tudo é melhor do jeito que é pra ser. Mas a gente só aprende depois, lembrou. Queria não precisar sentir. Queria ficar assim sem chorar com os filmes. Queria comprar frieza e se divertir sem amar. E ele não tinha ligado, lembrou. Flor não sabia o que queria. Se soubesse, não estaria satisfeita. Não estava satisfeita. E tacou-se ali em cima de um computador que nem terminara de pagar. A mesma máquina que suportara o peso dela nesses dias de feriado prolongado.


Estava meio paranóica. Não sabia como apagar a luzinha verde no canto de teclado, que já estava irritando-a. Essa solidão acompanhada já estava irritando-a. Sempre estava assim. E o pior, não conseguia dizer que amava as pessoas que amava. O que seria isso meu Deus?, refletiu. Precisava escrever pra exorcizar.


Queria não ser culpada disso. Seus esmaltes estavam acabando. Antes fossem só eles os derradeiros. Processos, vertigens, pensamentos. A luz verde continuava ali. Imóvel. Seria preciso desligar tudo para apagá-la? Acabrunhou-se. Flor tinha uma flor amarela de E.V.A em cima da mesinha. Tinha flores amarelas na alma. Pintara florzinhas nas unhas da mão esquerda. Mas essas eram vermelhas. Seria isso um sinal? Achava que não. Recebeu uma mensagem de Feliz Páscoa. Resolveu sair da cadeira de plástico que tão bem acomodara suas reflexões. O pai dissera que se não saísse dali, mofaria. Flores não mofam. Ou mofam? Foi beber água e regar-se pra tentar lavar a alma das florzinhas amarelas. Enfim ele ligou.

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